Gregório
Durlo Grisa[1]
As cotas
nas universidades como uma forma de ação afirmativa surgem no Brasil como
política para garantir diversidade étnico-racial no ensino superior
público. Demanda antiga dos movimentos
sociais negros, tais medidas pretendem, entre outras coisas, combater a
flagrante desigualdade entre negros e brancos no acesso a universidade, bem
como evidenciar que o racismo e o preconceito são problemas reais da sociedade
e que devem ser enfrentados com políticas públicas de intervenção.
Assim
sendo, se esclarece desde já que as cotas não nascem tendo como objetivo primeiro
combater a pobreza ou valorizar o ensino básico público, porém, as experiências
múltiplas adotadas no país também passam a considerar critérios de trajetória
escolar e de renda, o que entendo bastante positivo, mas que não devem desviar
de todo o debate da luta antirracista e por representação do segmento social
negro no ensino superior.
Na UFRGS o
critério de trajetória escolar é determinante, isto é, prioritário na política
de cotas, secundarizando o critério étnico-racial. Diante do cenário político de fortes
resistências às cotas raciais se adotou no ano de 2007 uma política possível
naquele contesto, o que se configurou em uma conquista que trouxe muitos
avanços. Todavia, há um conjunto de estudos para balizar as mudanças que podem
ocorrer na renovação da política, tais como: Relatório da Comissão de
Acompanhamento dos Alunos do Programa de Ações Afirmativas, da Comissão de
Acompanhamento Indígena, que se somam a trabalhos acadêmicos feitos sobre ações
afirmativas na UFRGS e em todo o Brasil e ainda aos anais da decisão do STF,
que julgou, por unanimidade, que as cotas raciais são constitucionais, pondo
fim, juridicamente, a alguns mitos e falsas polêmicas.
Os dados
apresentados nos relatórios feitos na UFRGS indicam um cenário de sub-ocupação
das vagas destinadas a candidatos autodeclarados negros egressos de escola
pública. No ano de 2012 são ocupadas 49,6%[2]
dessas vagas por esse grupo, o restante é ocupado por candidatos não negros de
escola pública. Quando são considerados candidatos negros com qualquer
trajetória escolar uma informação relevante se revela, em 2012 18,38%[3]
dos candidatos classificados nos 22 cursos mais concorridos se autodeclaram
negros e no geral dos cursos o percentual de negros aprovados é de 15,52%. Essas
porcentagens são maiores que os 15% reservados para autodeclarados negros egressos
de escola pública do atual modelo de cotas. O que justifica a ampliação das
vagas para 20% diante do que vamos propor a seguir.
Ainda tendo
como exemplo o ano de 2012, pois ele já contempla as mudanças ocorridas no
vestibular, os dados mostram que 3.005[4]
candidatos autodeclarados negros egressos de escolas públicas se inscreveram no
vestibular, enquanto, se olharmos os autodeclarados negros de qualquer
trajetória escolar o número de inscritos é de 5.137[5]
candidatos. Desses 5.137 inscritos no vestibular de 2012, 820 se classificaram,
o que representa 15,96%[6].
Um olhar
atento e de coração aberto para esses dados nos orienta a pensar que se faz
necessário algumas mudanças para que as cotas se efetivem e se aproximem do
cumprimento dos seus objetivos fundamentais presentes na Decisão 134/2007.
Usaremos
dois caminhos, já ensaiados nesse texto, para argumentar em defesa da
desvinculação mediada das cotas para candidatos egressos de escola pública, das
cotas para candidatos egressos de escola pública autodeclarados negros. Chamo
de desvinculação mediada a proposta que, aos moldes da UFSC, adota cotas para
candidatos autodeclarados negros PREFERENCIALMENTE egressos de escola pública,
caso estas vagas não sejam ocupadas elas passem a ser preenchidas por alunos
autodeclarados negros com outras trajetórias escolares.
O primeiro
caminho argumentativo é de cunho pragmático e com base nos dados. Destaquei aquelas
informações extraída dos Relatórios Institucionais porque elas demonstram que é
possível que se ocupe as vagas que os candidatos autodeclarados negros egressos
de escolas públicas não estão ocupando com a desvinculação mediada, tendo em
vista, que a demanda existe e que quando se contabiliza os candidatos com
outras trajetórias escolares isso fica evidente.
Saliento a
proporção de autodeclarados negros classificados de 18,38% nos cursos mais
procurados porque são esses que a demanda reprimida mais procura e porque isso
mostra que mesmo com a não ocupação plena das vagas oferecidas no atual modelo
para os autodeclarados negros egressos de escola pública se tem um índice razoavelmente
auto de ocupação dos autodeclarados negros de qualquer trajetória escolar. Portanto,
há uma grande probabilidade de que com a desvinculação mediada se supere os 20%
de reserva no geral dos cursos, tendo em vista o aumento significativo do
número de candidatos que deve ocorrer.
O fato de
que apenas 15,96% dos candidatos autodeclarados negros classificados em relação
aos que se inscrevem, nos mostra que; tanto a procura existe e tende a
aumentar, como se evidencia a existência de um conjunto de restrições no
processo de seleção e no atual modelo de cotas que impede a classificação de um
número mais expressivo de candidatos negros. Se se deseja realmente garantir a
presença de pessoas negras na universidade e ter a promoção da diversidade como
prioridade, o que seria coerente com os objetivos do Programa de Ações
Afirmativas, a adoção da desvinculação mediada é uma alternativa plausível e
viável.
A segunda
linha de argumentação é política, haja vista, que toda construção de uma
política pública tem esse caráter. Já afirmei que a gênese das cotas em
universidades como modalidade de ação afirmativa tem seu DNA na luta contra o
racismo e na busca por diversidade étnico-racial. Infindáveis pesquisas durante
os últimos 60 anos no Brasil vêm comprovando os brutais índices de desigualdade
racial do nosso país em todas as esferas da vida social. Dados de todos os
institutos de estatísticas do Brasil mostram que na saúde, na segurança, na
previdência social, na cultura e principalmente na educação os negros acumulam
desvantagens que perpassam o tecido social e transcendem uma análise
socioeconômica da realidade[7].
Essas
provas cabais, que os estudos e a realidade nos apresentam, também foram
necessárias para justificar e garantir outros tipos de ações afirmativas. A
constituição federal de 1988 garante reserva de vagas para mulheres e
portadores de necessidades especiais (que tem cotas nos concursos públicos) no
mercado de trabalho, com isso a legislação maior assumiu que esses grupos
sofreram e sofrem preconceitos sistemáticos e por isso a lei deve garantir
espaço para eles. As mulheres têm cotas de 30% dentro das candidaturas dos
partidos políticos, outra conquista que revela o reconhecimento do preconceito
e da desigualdade nos espaços de poder.
Trago esses
poucos exemplos para ilustrar o que tenho muita dificuldade de entender, as
provas que se tem em relação à necessidade de política afirmativa para
mulheres, para portadores de necessidades especiais e para negros, do ponto de
vista de significância científica, são as mesmas. No caso dos estudos das relações
étnico-raciais o número de pesquisas é superior aos feitos sobre os outros dois
grupos.
Boa parte
da população trata com naturalidade e não se incomoda com as ações afirmativas
para mulheres e portadores de necessidades especiais. Ninguém indaga acerca da
trajetória escolar ou da renda familiar desses grupos discriminados porque
esses critérios não fazem parte da ação afirmativa que os tem como foco.
Entretanto,
quando se trata de cotas raciais, apesar de todo o avanço jurídico, filosófico
conceitual e das mudanças já ocorridas nas universidades brasileiras, há
resistências justamente por parte daqueles que deveriam estar apoderados da
discussão ou, ao menos, encará-la com flexibilidade. A UFRGS tem uma grande
chance histórica de avançar em seu Programa de Ações Afirmativas, fazendo com
que o mesmo se efetive e se torne exemplo para outras instituições. O Congresso
Nacional deve votar até o fim do ano um projeto de cotas para todas as
instituições federais de ensino superior, a UFRGS poderia ser realmente
vanguarda e aprovar uma resolução corajosa socialmente e com grandes chances de
ser bem sucedida na sua implantação.
Reparem que
em nenhum momento usei o argumento legítimo e bastante utilizado de reparação
histórica para com o povo negro, fiz essa escolha porque uma incursão a
história de violência da escravidão e seus resquícios nos dias de hoje é já
objeção inquestionável e não se faz necessária aqui. E também porque creio
importante o exercício de trazer os elementos contemporâneos que endossam e
justificam as cotas raciais, política que carrega em si um avanço civilizatório
que alguns setores ainda não conseguem ver.
O caráter
democratizante das cotas já está fazendo bem à UFRGS, se o programa for
aperfeiçoado e mais assumido pela comunidade acadêmica a universidade tem muito
a ganhar. A diversidade não pode estar garantida na letra fria da lei, mas ser
uma realidade material na vida dos que fazem a universidade. Um lugar que se
pretende democrático não pode ser plural no discurso e se manter fechado no que
tange as suas posturas e ações. Como a universidade pode se intitular o espaço
da excelência acadêmica, da produção científica de ponta e lugar da crítica
legítima às desigualdades, sem atacar com coragem a desigualdade étnica que a
constitui?
Tenho muito
receio que a construção de uma política pública institucional se resuma ou
fique refém de um conjunto de opiniões dos membros do Conselho Universitário.
Essa é uma decisão política, mas não só, deve se levar em conta os dados
apresentados, o acúmulo científico de quem estuda as ações afirmativas e o
científico aqui não se restringe à estatísticas e nem se trata de comprovações
lineares, mas também de possibilidades e aproximações.
As ciências
humanas e jurídicas são as que referendam o campo científico de políticas desse
teor, as ações afirmativas representam bem mais do que sua viabilidade técnica
pode oferecer, elas tem o poder simbólico de expor uma ferida que os seres
humanos e a sociedade têm de curar. Pensar do latim ‘pensare’ significava curar realmente, sarar o ferimento, no caso curar
o racismo consciente e principalmente inconsciente que está enraizado em nossa
cultura. Por fim, creio ser muito importante lembrarmos sempre que as cotas
mexem com a vida de milhares de famílias e com as esperanças de grupos sociais
extremamente significativos que almejam uma vida melhor e uma sociedade mais
humanizada.
[1]
Membro da Comissão de Avaliação ad hoc a Comissão de Acompanhamento das Ações
Afirmativas da UFRGS.
[2]
Relatório Comissão de Acompanhamento dos alunos do programa de ações
afirmativas 2008-2012. Página 21, tabela 6.
[3]
Relatório do acompanhamento quantitativo do ingresso de estudantes no âmbito da
política de reserva de vagas da UFRGS no período de 2008-2012. Página 21,
tabela 8.
[4]
Relatório do acompanhamento quantitativo do ingresso de estudantes no âmbito da
política de reserva de vagas da UFRGS no período de 2008-2012. Página 12,
tabela 4.
[5]
Relatório do acompanhamento quantitativo do ingresso de estudantes no âmbito da
política de reserva de vagas da UFRGS no período de 2008-2012. Página 19,
tabela 7.
[6]
Relatório do acompanhamento quantitativo do ingresso de estudantes no âmbito da
política de reserva de vagas da UFRGS no período de 2008-2012. Página 23,
tabela 9.
[7]
O Laboratório de Análises Econômicas, Históricas, Sociais e Estatísticas das
Relações Raciais (Laeser) do Instituto de Economia da UFRJ vem fazendo
relatórios sistemáticos na última década com bases nos dados do IBGE, Fundação
Getúlio Vargas e do IPEA. Esses estudos compilam e cruzam um enorme contingente
de dados e encontram nas edições do “Relatório Anual das Desigualdades Raciais
no Brasil”.
Um comentário:
Prezado Gregório, primeiramente quero parabenizá-lo por sua trajetória na defesa da políticas de cotas na UFRGS e por este Blog ferramenta tão importante para a divulgação de nossas posições sobre nossas lutas sociais em defesa de uma sociedade mais justa e igualitária. Desde ontem a noite tenho me debruçado sobre seus escritos pois hoje a noite no Centro Universitário Univates haverá atividade de cine história no qual será passado o documentário "Raça Humana (2010)" sobre cotas na UNB, não fui convidado, mas me escrevi para ver o que eles pretendem. Mas mesmo com grande concentração não consegui me apropriar em tão pequeno tempo de um trabalho de anos tua caminhada acadêmica. Aproveito para informar que me encontro trabalhando/militando aqui no Vale do Taquari sem recursos materiais ou apoio institucional para pesquisa e um pouco das minhas andanças se encontram no Blogspot gilsonanjos.negritude. Pensei que seria interessante se você tivesse disponibilidade de acompanhar este debate de hoje a noite, mas como sei que não temos pernas para todas as demandas, fica o agradecimento pelas suas possibilidades e concreticidades. Forte abraça!
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