O filme “Biutiful” merece muito mais do que um Oscar. Ele toca fundo. E, curiosamente, das mais variadas formas. Podemos atribuir destaque a um enredo provocante, inovador. Podemos eleger uma coleção de cenas, que por si só, são inesquecíveis. Podemos reverenciar a atuação brilhante de Bardem. Poderíamos, contudo, ressaltar a beleza ímpar do cinema de González Iñárritu, cheia de artifícios riquíssimos. Ou só pelos contrastes das fotografias, uma estética improvisada e segura, num cenário repleto da vida de Barcelona. As variantes do belo conformam o mosaico de Biutiful.
A história é contada com grande sensibilidade. Uxbal, o protagonista interpretado por Javier Bardem, é um médium, sem emprego formal, vivendo sempre em crise. Por um lado, tem a árdua tarefa de criar dois filhos- com quem mantém uma relação carinhosa-, encarar a relação com a ex-esposa [bipolar, com fortes transtornos compulsivos]. Sua vida social alterna entre a atividade espiritual e uma série de atividades ilícitas de contrabando e agenciamento de mão de obra ilegal. Os outros personagens que se enlaçam no filme são o seu irmão[sustentado pela vida noturna], um empresário chinês que vive controversa relação homossexual e depende diretamente da exploração da mão de obra semi-escrava de seus compatriotas, imigrantes africanos ilegais que vivem de contrabando, um policial corrupto. Toda esta trama está marcada pela incidência da morte. Os “encaixes” se dão de forma inusitada, levando a interessantes diálogos, onde o contraste com a morte serve para ressaltar os aspectos mais luminosos da vida. A descoberta, por parte de Uxbal, de um câncer de próstata terminal, sela o destino dos personagens do filme. A morte, que o acompanha na lida cotidiana como espiritualista, vai rondar sua vida como “farsa” e “tragédia”- dezenas de chineses são mortos por conta de um vazamento de gás, oriundo da precariedade dos aquecedores que Uxbal encomenda, pensado ser estes a salvação dos trabalhadores ilegais. Ainda assim, por mais “existencialista” que se possa perceber o roteiro, ele tem um inicio, meio e fim; o trajeto bem definido começa e termina com cenas idênticas, contudo, redefinidas no tempo, espaço e significado da obra.
As cenas, mesmo que separadas entre si, são geniais. A primeira cena é marcante. Num dialogo com a filha, Uxbal, voz rouca e debilitada, lembra sua família, seus pais, como exilados que vão para o México para escapar da ditadura de Franco. Logo após, ele recorda que escutava uma rádio, quando pequeno, que reproduzia o som das ondas do mar. A cena se agiganta, com a entrada de sons de rádio em sintonia e das próprias ondas do mar. Outra cena: no meio dos Pirineus, Uxbal alterna o dialogo com seu pai e seu filho, numa visão futurista. Outra cena incrível , contudo, é a que uma imigrante senegalesa apresenta seu filho, Samuel. Ela explica que é uma homenagem do pai, torcedor do Barcelona ao craque camaronês E´to. E na maior parte destas cenas riquíssimas, ao fundo encontramos Barcelona, de inúmeras formas. Quase como uma provocação, ela aparece sempre a meia luz, seja em suas praças centrais ou no território da periferia ou submundo, privilegiando o chamado “lusco-fusco”, a indefinição se é dia ou noite.
Bardem, de sua parte, chega ao auge, podemos dizer. Ele se aproxima de sua atuação em “Mar Adentro”- quando representa o caso real de Ramon San Pedro, tetraplégico aos 26 anos que lutou por seu direito à morte. Na interpretação de Uxbal , leva ao extremo a valorização da vida, na suas relações com os filhos, com a ex-esposa e com os trabalhadores que agencia. Irranitu não utiliza do moralismo, ao contrário, o interdita. A caminhada ao lado da morte, traz a Uxbal o contraste da vida. Bardem assume o personagem quase como o próprio “médium”, numa atuação que entra para a história recente do cinema.
O toque do diretor completa a obra. Depois da ruptura de Inarritu com seu tradicional parceiro dos aclamados 21 Gramas e Babel, Guillermo Arriaga, pairavam dúvidas sobre os novos rumos do diretor mexicano. A trama psicológica que é guiada pelo pano fundo de vários conflitos sociais explicitos traz originalidade. Barcelona, a “cidade aberta” de uma Europa cada vez mais fechada, é apresentada sem fetiches. Os dramas dos imigrantes, com condições desumanas que lembram em muito as fábricas do capitalismo do século XIX, a rede de corrupção que se articula em torno da ilegalidade, as condições precárias de habitação dos suburbios da Catalunha, são elementos que convivem com a vida, a morte e a consciência de Uxbal. O flerte com o fantástico, adicionando sons, imagens distorcidas à uma realidade crua soa como genial, nos olhos e trejeitos de Bardem. O debate existencial, despido como dito, de qualquer moralismo, vai conduzindo a trama, quase que despretenciosamente para as reminiscencias do próprio diretor. A retirada do pai de Uxbal para o México de Inarritu, a dedicatória final ao pai, a relação dilacerada e preocupada de um pai com seus dois filhos; o mundo de Inarritu aparece e desaparece a cada minuto no filme, se realizando de forma defitiva na mais bela metáfora do filme: Como se escreve a palavra “biutiful”?
A relativização do que é ou não é belo, a noção dialética entre a vida e a morte, a perspectiva de uma alteridade no julgamento moral do protagonista, abrem a cabeça. Os mesmos aquecedores que trariam redenção aos chineses são seus algozes silenciosos. A paixão arrebatadora do casal homesexual leva a desconfiança e a morte. A loucura da ex-esposa de Uxbal o faz mais sensato. No jogo do claro-escuro de Barcelona, Inarritu articula sua unidade e luta de contrários. Não há uma “moral da história”.
Os valores e os sentidos da vida devem ser pensados, como queria Sartre, com a consciência de que levamos “A morte na alma”.
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