Que belo debate o Brasil está vivendo sobre a saúde pública e o Programa
Mais Médicos. Belo porque nasce de uma proposta governamental que tira da
inércia as políticas públicas da área e também por expor uma ferida grave do
nosso país, qual seja, a falta de atendimento médico que atinge cotidianamente
a maioria da população.
Creio que se pode salientar alguns consensos básicos sobre o tema, o
Brasil precisa aumentar o investimento em saúde de modo significativo, a
infraestrutura tem de ser constantemente qualificada, as 15 profissões da área
da saúde precisam de valorização permanente.
Porém, não se vê só beleza nessa discussão, infelizmente ela está sendo
palco para raivosos preconceitos, xenofobia, demonstrações de desinformação,
superficialidade que nos faz desconfiar se não são intencionais, tamanha a
bizarrice de alguns comentários vindo de setores privilegiados da população.
Antes de falar sobre esses comentários é preciso contextualizar o
cenário, a polêmica e o desespero de parte da classe médica e dos conservadores
se dá quando falam de médicos cubanos, por isso cabe destacar o seguinte.
O Programa Mais Médicos recebeu solicitação
de 3.511 municípios apresentando demanda de 15.450 médicos. 1.096 profissionais
com diplomas do Brasil e 244 formados no exterior (sendo 99 de nacionalidade
brasileira e 145 estrangeiros) confirmaram sua participação no programa. Eles optaram
e serão distribuídos em 516 municípios e 15 distritos sanitários indígenas.
Bom, 2995 cidades precisam ser atendidas porque ninguém se inscreveu
para elas, nenhum médico brasileiro nem estrangeiro quer ganhar 10 mil reais e
instalações para trabalhar nesses municípios. Diante disso o governo fez um
acordo com o Estado de Cuba através da Organização Pan-Americana de Saúde
(OPAS) para trazer nos próximos meses 4 mil médicos daquele país, eles irão se
enquadrar nas regras do Programa Mais Médicos. 400 deles chegam nesse fim de
semana, abaixo o perfil deles divulgado no site da OPAS.
• 89% têm mais de 35 anos, sendo
65% do total na faixa etária de 41 a 50 anos; 84% têm mais de 16 anos de
experiência em medicina; 60% são mulheres e 40% homens; Todos já cumpriram missões
em outros países, incluindo participação em missões em países de língua
portuguesa; Todos têm especialização em Medicina da Família e da Comunidade e;
20% têm mestrado em Saúde.
Não farei nenhum paralelo de comparação da saúde no Brasil com a de
Cuba, esse não é o foco desse debate e os órgãos internacionais como Organização
Pan-Americana de Saúde, Unicef, Organização Mundial de Saúde são ótimas fontes
para pessoas curiosas sobre isso e bem intencionadas.
Lendo os comentários nas redes sociais, em enquetes, temos alguns
padrões nos posicionamento contrários:
- um avalia, de modo maniqueísta, o governo como uma conspiração
comunista a serviço de Cuba que deseja enganar a população e perseguir os
médicos. Delírio absoluto.
- outro perfil de comentário é mais calcado no senso comum desinformado
que afirma que médicos cubanos serão escravos, uns mais ponderados questionam a
forma de pagamento do convênio assinado.
Sobre a forma de pagamento, aqui temos um tema bom, nota-se o quão é
difícil conceber algo que não se rege pela lógica liberal, como dói compreender
que pode existir outro modo de remunerar o trabalho. Cuba tem um regime
político diferente do Brasil, goste você ou não, as regras de convênios como
esse são claras e legitimadas por dezenas de países.
Os médicos cubanos são
funcionários do Estado em Cuba, tem seus trabalhos garantidos, uma carreira. Em
missões como essa no exterior eles recebem um adendo em seu salário (4 mil
reais provavelmente a depender do custo de vida das cidades para onde serão
destinados) e outra parte fica para o Estado que garantiu sua formação gratuita
desde sua infância.
Gonzales, um dos médicos cubanos recém-chegados, quando perguntado sobre
o quanto vai receber afirmou: “não
sabemos ainda, mas será o necessário, pois tenho emprego garantido no meu país
e parte dos recursos irá para ajudar o meu povo”.
Concordamos ou não com essa lógica, essa dinâmica, isso é ter contato
com outro modo de ver a vida, de olhar para as relações sociais e humanas,
assim como temos direito de termos nossas interações trabalhistas pautadas em
uma lógica mais mercantil e individual, os profissionais de outros países tem o
direito de pensar e agir diferente de nós.
Nesse caso, criticar o PT, ter uma postura arrogante se retirando do
debate da urgência de atendimento médico que temos no país, deixar escapar do inconsciente
um sério “complexo de superioridade” (que pensa ser 10 mil reais um salário
escravo, que não quer permitir que outros profissionais vão aos rincões do país
por eles serem estrangeiros) é um desfavor que parte da classe médica presta a sua
nação.
Para maioria da população pobre brasileira que, não acessa a internet 53,5% (IBGE, 2011),
que não tem acesso a essas polêmicas, que não tem alternativas para seus
problemas de saúde, esse debate político e corporativo não interessa. O
importante para eles e elas é sobreviver, se curar agora, melhorar minimamente
a qualidade de vida e a condição do seu organismo.
Em muitos lugares onde serão alocados os médicos cubanos nunca se pensou
em medicina preventiva, nunca se executou programas de medicina comunitária com
equipes multidisciplinares. Essa ação governamental é emergencial, mas já vem
tarde, era para ter sido feita a muito tempo, por qualquer governo. O Tocantins, em 1998 no governo de direita de Siqueira Campos (então no extinto PFL, hoje filiado ao
PSDB e novamente governador) teve inciativa parecida ao trazer médicos cubanos
por convênio.
Outro grupo de comentários que tratam do Revalida, da questão do idioma, questionam a competência dos estrangeiros, cegamente ainda afirmam que não
faltam médicos, não merecem nota diante do real debate que deve ser feito.
Qual é esse real debate? A lógica mercantil da nossa saúde, a formação para uma medicina que concebe a doença como mercadoria e fonte de lucro, as relações nefastas entre médicos e laboratórios farmacêuticos, a cultura da pulverização de medicamentos em detrimento de prevenção e ações integradas, a gestão pública e das fundações, o poder e o lucro dos planos de saúde e seus precários serviços, além daqueles consensos básicos listados no começo do texto que são estruturais.
Qual é esse real debate? A lógica mercantil da nossa saúde, a formação para uma medicina que concebe a doença como mercadoria e fonte de lucro, as relações nefastas entre médicos e laboratórios farmacêuticos, a cultura da pulverização de medicamentos em detrimento de prevenção e ações integradas, a gestão pública e das fundações, o poder e o lucro dos planos de saúde e seus precários serviços, além daqueles consensos básicos listados no começo do texto que são estruturais.
Tenho um adendo fundamental sobre exigência
demagógica pelo revalida em um programa emergencial com tempo de duração
determinado, vou ser didático. É óbvio que a exigência de revalida em um
programa como o “Mais Médicos” seria o principal motivo para o seu fracasso.
Todo profissional que faz o revalida no Brasil pode trabalhar em qualquer lugar,
com qualquer carga horária, se quiser somente na sua especialidade, e ainda
cobrar a quantia que achar adequada pelos seus serviços, além de disputar
livremente mercado com os profissionais formados no Brasil. Isso é tudo o que
não prevê o programa, com a licença especial de 3 anos e com avaliação permanente
das universidades, se garante o objetivo de segurar os profissionais somente na
atenção básica de saúde, por 40 horas semanais, com a bolsa de 10 mil reais e, o
principal, trabalhando estritamente nos municípios e regiões que forem alocados,
que são as que mais necessitam de médicos. Sem comentar a burocracia e a
morosidade que envolve o Revalida.
Por fim, penso que vale dizer que não costuro meu argumento no intuito
de me por do lado do governo na rasa dicotomia entre “governo e cidadão de bem”
que as entidades representativas da classe médica querem incutir na opinião
pública. Sou critico do ponto de vista macro político ao governo do PT, mas
creio que este não é o cerne da discussão em tela, apesar de ser um elemento
dela.
Todavia, não posso me furtar de
marcar meu apoio ao Mais Médicos e a vinda de médicos cubanos para trabalharem
nas circunstâncias colocadas. Ainda mais diante dessa onda de preconceito e de
alucinações conspiratórias que a direita faz circular nas redes sociais e que
infelizmente, por inúmeros motivos, conquista alguns desavisados que, ao invés
de aproveitarem esse momento para oxigenar as consciências ao ter contato com
princípios de humanidade e solidariedade tão deturpados em nossas rotinas,
preferem reproduzir mantras corporativos, medos antiquados e moralismos
constrangedoramente elitistas.
12 comentários:
Muito bom!
Até certo ponto concordo, mas temos q ver a moeda dos dois lados. Se o governo tivesse já investido o necessário nesses pontos onde não há saúde ou mesmo prevenção à doenças, não precisaríamos trazer médicos de outros lugares, mesmo porque tem dinheiro de sobra pela arrecadação que vai pelo esgoto dos bolsos dos parlamentares. Ou seja é mais prático e sobra mais para a roubalheira dos parlamentares importar médicos do que investir nos nossos médicos no sertão ou no interior!... Não há no Brasil um programa governamental de medicina preventiva, mesmo porque os governantes se utilizam da medicina moderna, pois quando ficam doentes vão para o Hosputal Sírio Libanês, um dos mais modernos e caríssimos do Brasil! Agora me diga Gregório Grisa, qual profissional não prefere estar na sua própria cidade, mesmo sendo no sertão, se tivesse condições para trabalhar? É visível a falta de recursos e o descaso do governo para os profissionais brasileiros ficarem nesses lugares!
Concordo que a mentalidade de médicos da família é ponto extremamente positivo dos cubanos, assim como os europeus. Estes preferem tratar as causas e não as consequências. Mas pense comigo, serão destinados mais de R$250.000.000,00 por ano diretamente aos cofres cubanos. 250milhões de reais poderiam formar milhares de outros médicos brasileiros com foco em medicina familiar. Porque nós brasileiros temos que arcar com a educação dos médicos cubanos se nem ao menos nós temos escolas e faculdades decentes? Eu não quero pagar a educação de terceiros enquanto a nossa sofre diariamente. Estão tapando o sol com a peneira, como toda a ação dos PTralhas...
Beleza de texto, parabéns, ia rebater um dos comentários, mas as vzs o silêncio é o melhor caminho.
Bom, Vanias se tanta coisa tivesse sido feita não estaríamos pensando sobre isso. Os consensos sobre estrutura e recursos destaco no texto. No sertão e nos rincões infelizmente não temos médicos e raras faculdades de medicina, nem para investir. Sobre roubalheira, corrupção e conjecturas não teria o que comentar, não é o tema do texto.
Diogo, formar médicos, fundar e expandir universidades não se dá através de um cálculo orçamentário, quem precisa de atendimento, e são milhares, não podem esperar tudo que envolver promover isso. O convênio com Cuba terá investimento de R$511 milhões do Estado brasileiro. R$ 500 milhões de reais é o gasto com qualquer arena para copa, qualquer reforma de aeroporto, é o que Ministério da Saúde gasta por ano somente com doenças relacionadas a obesidade. R$ 500 milhões de reais é o montante que estava previsto para fazer o plebiscito da reforma política, é a receita anual do Real Madrid, é o valor recusado pelo Led Zeppelin para voltar a tocar. Então é um recurso que valha todo o alarde que é feito e que não podemos reproduzir. Pra se ter uma ideia se esse montante poderia ou não formar "milhares" de médicos brasileiros, hoje um médico formado em universidade pública custa 800 mil reais. Mesmo que isso ocorresse em um passe de mágica, com o valor que será investido no convênio formaríamos um pouco mais de 500 médicos, e serão 4 mil médicos cubanos. Sobre o Pt também não é o tema do texto.
Gregório, meus parabéns.
Gostei do seu texto e das informações lá contidas. Moro numa capital, mas sou do interior e conheço muito bem as carências da minha região, o suficiente para dar todo o meu apoio a esta iniciativa que, concordo, já deveria ter ocorrido há muito tempo.
Saúde, sabedoria e paz!
Virgílio Agra
Em primeiro lugar baita texto, Gregório!
A meu ver, as criticas dos coxinhas são um reflexo de quando se coloca a politica acima das necessidades básicas daquelas pessoas. A questão não é complicada do ponto de vista dos pacientes, pois quem precisa não pode esperar, é bem óbvio para mim, mas a mensagem do Gregório (ao menos o que entendi dela) é que este debate serve pra repensar as relações de trabalho dos médicos, para além de simplesmente baixar a cabeça ao mercado.
De um lado temos os médicos que querem ganhar pelo valor de mercado de trabalho que pague o valor bem e do outro temos o governo que não pode competir com esse mercado e tem a obrigação de cuidar dessas pessoas, coisa que o setor privado não tem. Dai vem a "terrível" escolha que o governo fez em tomar uma atitude que favorece antes quem mais está precisando. Com a ressalva de ser uma coisa tão pequena, tão insignificante em relação ao quadro geral da saúde, mostra como essa sociedade é conservadora e as pintas acho que nem se dão conta de quanto o são!
Teu texto é precioso, Gregório. Repele a ladainha míope e rasa que toma conta de nossos debates públicos com raciocínios e argumentos diretos, concordem ou não com eles. Lembro que as universidades públicas brasileiras, no caso em pauta, ficam expostas quanto à sua privatização, ao menos na lógica de seleção e formação de profissionais. Ao responderem predominantemente ao mercado e à meritocracia formam médicos que não vão e não querem ir para as zonas pobres do país. E o mesmo vale para outras áreas, como a educação, onde formamos pouquíssimos professores, em especial naquelas disciplinas onde há maiores carências das escolas públicas, como física e química. Acredito que essa poderia ser uma oportunidade para as universidades repensarem sua inserção social, visando ir às origens dos problemas que o Mais Médicos tenta remediar.
Gregório,
Só agora consegui ler teu artigo e está muito bacana, dando nome e número aos bois. Neste momento, temos que estar vigilantes contra os arroubos de desinformação e intolerância direcionados contra os cubanos. Cabe expor a a incoerência dos que se dizem democráticos, mas agem limitando o atendimento médico à população, e bem o fazes.
Abraços!
Gregório Grisa, vc poderia me passar a fonte responsável pela informação sobre o custo da formacão médica na univ. pública, acredito que 800mil é se não uma mentira, um delírio, uma vez que o valor passaria de 10 mil reais por mês e sabemos que as mensalidades em ótimas faculdades de medicina particular não passam de 6 mil (isso contando com o lucro que elas produzem). Obrigada.
Angela, esse é um cálculo aproximado que compreende gastos de toda ordem, com infraestrutura, materiais, auxílios, deslocamentos, pagamento de pessoa docente e técnico e gasto do próprio aluno. Converse com um diretor de escola de medicina de universidade federal pra ter uma ideia. Essa reportagem é bem didática, os gastos passam de 700 mil reais sim. http://noticias.r7.com/educacao/noticias/custos-durante-graduacao-em-medicina-podem-passar-dos-r-700-000-20130721.html
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