terça-feira, novembro 21, 2006

Os diferentes sabores dos domingos (1ª parte)

E você era a princesa que eu quis coroar
E era tão linda de se admirar
Que andava nua pelo meu país.



Foi nos anos setenta, do século passado, um pouco da nossa adolescência. O primeiro compromisso social era a missa das 10, não era propriamente um compromisso religioso, íamos para olhar a Beth, nossa musa inspiradora das manhãs de domingo, sua mini saia e suas pernas róseas, mil imaginações. Na saída, reuníamos a turma e ganhávamos a Gaspar, nenhum comentário sobre o sermão do padre, mas sobre ela, alguns se gabavam de ter ganhado um olhar, outros comentavam sua roupa, seu cabelo. Eu, muito pouco ou quase nada de olhada recebi, não fazia mal, quem sabe no domingo seguinte, era pouco provável, mas o platonismo aceita tudo, ainda mais dela, que além de linda era parente do padre, e isto, para época, não era pouca coisa.
A primeira parada obrigatória era na esquina da Casa do Povo (que do povo mesmo não tinha nada), comprar as carrapinhas que ali um vendedor alto e silencioso vendia, e era só no domingo. Mais adiante, a cigarraria do seu Chiquinho Padula, outra parada obrigatória, olhar as capas das revistas da semana, a Placar, o Fantasma, Cavaleiro Negro, etc. Conforme a mesada, que era semanal, comprava-se alguma revista, mas isso não era muito comum, comprávamos uns chicletes ou picolé e íamos em direção ao Cine Glória para ver o que ia passar no matine da uma (1 hora). Depois de olhar os cartazes, nos dispersávamos rapidamente, tínhamos que ir almoçar com família e voltar rápido para o cinema. Almoço de domingo lá em casa era sempre com a família, era uma das questões de honra do pai e nós cumpríamos, lembro que domingo sempre tinha pastel (mas os bons mesmo eram os da Marieta) e refrigerante, naquela época, ele (o refri) não era tão banalizado, lá em casa, só aos domingos.
Após um rápido encontro para reunir a turma na frente da cigarraria, era questão de minutos e brotava gente de todas as esquinas, marchávamos até o cinema, alguém recolhia o dinheiro para as entradas, mas antes, outra parada obrigatória – comprar sorvete do seu Romeu no Bacacheri – um gosto impar (o Tubino disse que vai ressuscitar o sorvete com a mesma fórmula). Excitados, entrávamos em fila no cinema, ficávamos alguns minutos no hall de entrada, alguns encontravam suas namoradinhas e sumiam para os locais mais despovoados “do escurinho do cinema”, eu nunca entendi o porquê. Outros iam se abastecer de balas (as de goma eram minhas preferidas), chicletes (os de caixinha era a novidade, porém mais caro) e chocolates (bastão de leite nunca mais vi).

Agora eu era o herói
E o meu cavalo só falava inglês
A noiva do cowboi era você além das outras três
Eu enfrentava os batalhões, os alemães e seus canhões
Guardava o meu bodoque e ensaiava o rock para os matines.

Sentávamos numa fila só, expectativa grande, apagava a luz, a gritaria e a bateção de pé era infernal e ensurdecedora, sacos de pipoca eram estourados e voavam para todos os lados, e alguns com o conteúdo dentro, o lanterninha, alucinado, em passos largos, ia, sem parar, de ponta a ponta do corredor. A cada fileira em que passava, a frase do estigma lhe rompia os tímpanos: “O lanterninha é o bixo!”. Começava a musiquinha do canal 100, futebol, sempre o Flamengo contra alguém, no Maracanã: tararãaa, época do Fio Maravilha, vi o Luizinho do América fazer dois gols no Flamengo e virar cambalhota, virei americano no Rio. A sessão era dupla, quase sempre um faroeste e um filme de guerra, cultura norte-americana direto na veia. John Waine matando muito índio, ou o Guliano Gemma, meu preferido, nos filmes de guerra, geralmente, os ianques massacravam algum povo em nome da paz e da liberdade, no cinema, não perderam nenhuma para o Vietnan. No meio disso tudo, momentos sublimes, quando o mocinho beijava a mocinha, era um frisson geral: ohhhhhh! Quando estávamos com a namoradinha, ia-se no embalo, roubar um beijo.

Finja que agora eu era o seu brinquedo
Eu era o seu pião, o seu bicho preferido.
Vem, me dê a mão, agente agora já não tinha medo.
No tempo da maldade, acho que a gente nem tinha nascido

Falando em maldade, a ditadura militar “comia frouxo”, pouco ficamos sabendo das atrocidades na época, já era meados da década de 70, e nós também íamos nos transformando, estávamos ficando maiores, íamos mudando em muita coisa, uma delas, passamos do cinema da uma para o das quatro (por pouco tempo) e já ganhamos o direito de ir à noite (mas essa é outra estória). Quanto à missa das 10, a ampla maioria já não ia mais, a Beth tinha ido embora para outra cidade, a perda foi significativa, mas não irreparável, logo encontramos outra musa coletiva – a Italianinha – por isso, muitos, após o cinema da uma, iam para a Sociedade Italiana, ganhar inspiração, mas, na maioria das vezes, contentavam-se em ver o jogo de bocha. Agora, havia chegado a hora de descobrir os sabores mágicos da noite.

Agora era fatal que o faz-de-conta terminasse assim.
Pra lá desse quintal era uma noite que não tem mais fim
(Canção João e Maria – Chico Buarque de Holanda)


José Ernesto Alves Grisa
Professor de Sociologia e Extensão Rural

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