quarta-feira, março 28, 2012

L.I.V.R.O.


Por Millôr Fernandes, 1923-2012

 Um novo e revolucionário conceito de tecnologia de informação

Na deixa da virada do milênio, anuncia-se um revolucionário conceito de tecnologia de informação, chamado de Local de Informações Variadas, Reutilizáveis e Ordenadas – L.I.V.R.O.
L.I.V.R.O. representa um avanço fantástico na tecnologia. Não tem fios, circuitos elétricos, pilhas. Não necessita ser conectado a nada nem ligado. É tão fácil de usar que até uma criança pode operá-lo. Basta abri-lo!
Cada L.I.V.R.O. é formado por uma seqüência de páginas numeradas, feitas de papel reciclável e capazes de conter milhares de informações. As páginas são unidas por um sistema chamado lombada, que as mantêm automaticamente em sua seqüência correta.
Através do uso intensivo do recurso TPA – Tecnologia do Papel Opaco – permite-se que os fabricantes usem as duas faces da folha de papel. Isso possibilita duplicar a quantidade de dados inseridos e reduzir os seus custos pela metade!
Especialistas dividem-se quanto aos projetos de expansão da inserção de dados em cada unidade. É que, para se fazer L.I.V.R.O.s com mais informações, basta se usar mais páginas. Isso, porém, os torna mais grossos e mais difíceis de serem transportados, atraindo críticas dos adeptos da portabilidade do sistema.
Cada página do L.I.V.R.O. deve ser escaneada opticamente, e as informações transferidas diretamente para a CPU do usuário, em seu cérebro. Lembramos que quanto maior e mais complexa a informação a ser transmitida, maior deverá ser a capacidade de processamento do usuário.
Outra vantagem do sistema é que, quando em uso, um simples movimento de dedo permite o acesso instantâneo à próxima página. O L.I.V.R.O. pode ser rapidamente retomado a qualquer momento, bastando abri-lo. Ele nunca apresenta “ERRO GERAL DE PROTEÇÃO”, nem precisa ser reinicializado, embora se torne inutilizável caso caia no mar, por exemplo.
O comando “browse” permite fazer o acesso a qualquer página instantaneamente e avançar ou retroceder com muita facilidade. A maioria dos modelos à venda já vem com o equipamento “índice” instalado, o qual indica a localização exata de grupos de dados selecionados.
Um acessório opcional, o marca-páginas, permite que você faça um acesso ao L.I.V.R.O. exatamente no local em que o deixou na última utilização mesmo que ele esteja fechado. A compatibilidade dos marcadores de página é total, permitindo que funcionem em qualquer modelo ou marca de L.I.V.R.O. sem necessidade de configuração.
Além disso, qualquer L.I.V.R.O. suporta o uso simultâneo de vários marcadores de página, caso seu usuário deseje manter selecionados vários trechos ao mesmo tempo. A capacidade máxima para uso de marcadores coincide com o número de páginas.
Pode-se ainda personalizar o conteúdo do L.I.V.R.O. através de anotações em suas margens. Para isso, deve-se utilizar um periférico de Linguagem Apagável Portátil de Intercomunicação Simplificada – L.A.P.I.S. Portátil, durável e barato, o L.I.V.R.O. vem sendo apontado como o instrumento de entretenimento e cultura do futuro. Milhares de programadores desse sistema já disponibilizaram vários títulos e upgrades utilizando a plataforma L.I.V.R.O.

segunda-feira, março 26, 2012

Colher

Até sem perceber estamos fazendo escolhas, inclusive quando não escolhemos. Em geral nos direcionamos para a segurança, é natural que o que nos é conhecido seja a primeira opção. Acostumamo-nos com a presença, com a tendência, com a repetição, enfim, com o mesmo lugar na sala. Acostumar pressupõe se apegar, entregar boa parcela da nossa energia àquilo que já se tornou parte da rotina, logo, da vida. Porém, são as escolhas que rompem com o costumeiro que consideramos as mais difíceis e importantes, isto é, se acostumar com optar por não se acostumar é que é complicado. Por quê? Elas não se resumem somente a nós, elas mexem com a vida de outras pessoas, quem se acostuma se acostuma com, junto! Tomar decisões, nesse caso, também é fugir, é deixar que as outras pessoas caminhem para o impensado quando acostumadas. É manter os elos não os mantendo, é criar novos jeitos de lidar com os mesmos problemas. As pessoas precisam dos erros das outras, viver, por si só, é errar, já que não há rascunho, não se rebobina o tempo, não se apaga o que já foi registrado pela razão e o sentimento, assim como não se prevê. Aprender, com a alegria e o sofrimento alheio, é uma escolha que dificilmente vamos fugir de tomar, simplesmente pelo fato de que ninguém fica feliz nem triste por si só, sem uma causa que envolva outro alguém. Às vezes, não só produzimos efeitos nas vidas das pessoas, nós mesmos somos os efeitos, de corpo inteiro, carne, osso e principalmente água. Tomar decisões que se destinam a cortar costumes e convivências são importantes, mas não são definitivas nem absolutas. É fundamental lembrar que só tomamos esse perfil de decisão após ter tomado outra tão essencial na vida quanto, a de se acostumar. 

terça-feira, março 20, 2012

Pra sempre


Eles se conheceram de um jeito atípico, em um momento raro.
Ela disse como quem recebe: quem seria?
- Sou eu o mais honesto, disse ele.
- Ué se és quem imagino quase nunca te entendo e olha que sou paciente pra tudo, afirmou a moça.
- É que eu fujo de você, és muito definitiva pra mim.
Parece que eles estão mais próximos do que é possível e mesmo assim desconfiados.
Ele tem orgulho de ser um espelho para as pessoas que o usam para se entender.
Por outro lado ela é temida por só ter tido relações fortes e inexoráveis.
- Como você me imagina? Perguntou ela.
- Um pouco prepotente pelo fato de que ninguém faz pouco de você e, além disso, me parece muito distante sempre, respondeu o rapaz.
- Mas quem banca de misterioso aqui pelo que me consta é você, e ainda tens um ar de visita noturna que não lhe dá muita credibilidade.
Os dois discutiram por mais um tempo, ele ponderou que não há mistério maior que ela, enquanto isso ela afirmou que entre eles ele era o único mistério que valeria a pena desvendar.
Ao se despedir, já que ele não ia ficar ela perguntou:
- qual seu nome?
- Sonho, e o seu?
- Morte.
Ambos falaram juntos:
- foi um prazer!



Gregório

segunda-feira, março 19, 2012

Caio Fernando Abreu: o cara do Face


Maykon Souza


Cena de Onde andará Dulce Veiga, adaptação cinematográfica
do livro homônimo de Caio Fernando Abreu - Foto: Divulgação
No Shopping, puxei o livro da mochila e percebi que estava sendo observado. Mal virei a primeira página e ela se aproximou. Devia ter uns 20 anos. Ficou se contorcendo, tentando ler o nome que estava na capa. Conseguiu:
– Ai, que legal...
– O quê?
– Ele tem livro?
– Como assim?
– O Caio tem livro...
– Que Caio?
– Esse que você tá lendo...
– Tem... vários... um dos maiores escritores do Brasil...
Ela não acreditou muito.
– Caramba... achei que ele era só o cara do Face.
– Cara do...?
– Face... Facebook... internet... cê tem, né?!
– Tenho, tenho...
– Ele também.
– Quem?
– O Caio... tem um perfil todo fofo... Ele escreve cada coisa bonita.
– O Caio?
– Claro, pô. Não é dele que a gente está falando?!
– É que é impossível ele ter perfil.
– Por quê?
– Ele morreu...
– Impossível ele ter morrido!
Chegamos num impasse. Ela virou para o outro lado, como que digerindo a informação. Depois de um tempo, indignada:
– E quem atualiza o perfil dele, então?
– Ele é que não é.
– Cê ta brincando... não deve ser o mesmo... morreu de quê?
– Aids.
– Aids??? Então, ele era velhão?
– Velhão?
– É, ué! Aids não é aquele negócio que dava nos anos 80?
Novamente, um impasse. Dessa vez, eu é que virei para o outro lado para digerir a informação.
– Lê um pedaço aí pra mim.
– Qualquer um?
– É.
– Lá vai: “Aquele negrão, sabe aquele negrão de cabelo rastafári que fica sempre ali no Quênia’s Bar? Aquele que vende fumo, diz que tem vinte e cinco centímetros, já pensou? Isso não é uma jeba, é uma jiboia. Até vinte aguento numa boa, até o cabo. Vinte e cinco não sei, tenho até medo. Pode rasgar a gente por dentro, sei lá”*.
– Ele escreveu isso?
– Sim.
– O Caio?
– Claro, pô. Não é dele que a gente está falando?!
Ela se levantou, indignada:
– Ele escreve coisas fofas, não isso aí. Ele fala de amor, esperança, sorriso. Coisas pra valorizar a gente. Ele tem frases que se encaixam em todos os momentos da vida da gente.
– Isso é Minutos de Sabedoria, não Caio Fernando Abreu.
– Minutos de quê?
Reparei que outra garota tinha se aproximado. Resolveu entrar na conversa:
– Que foi?
– O cara aí tá dizendo que conhece o Caio.
– Que Caio?
– O do Face!
– Ah, tá... prefiro a Clarissa...
– Que Clarissa?
– Ah, sei lá. Acho que é Espectro.
– Não é Clarissa, é Clarice, sua burra!
Começaram a tirar sarro uma da outra e se foram sem dar tchau.
Da próxima vez que estiver em público, puxo um Dostoiévski. Duvido que ele também tenha perfil fofo no Face.

*O trecho foi extraído de uma frase da personagem Jacyr, do livro Onde Andará Dulce Veiga?, publicado em 1990

Maykon Souza é autor do blog Amenidades Crônicas (http://amenidadescronicas.blogspot.com)

segunda-feira, março 12, 2012

Leituras e releituras

"Há qualquer coisa de indizivelmente patético na natureza da nossas São Petersburgo quando nela desperta a primavera, quando de repente ostenta todo o seu sortilégio e exige todas as graças que o céu lhe empresta, quando se cobre da tenra grama nova e se enfeita de flores garridas e de delicadas florzinhas. Então faz-me sempre lembrar a menina triste para a qual olhamos chegamos cheio de pena, às vezes com piedosa simpatia, e na qual às vezes também nem sequer reparamos, mas que um dia, de repente, quando menos se espera, como por encanto se torna, de um momento para o outro, tão bonita que ficamos desconcertados e aturdidos e, ao vê-la, perguntamos admirados: que poder teria lançado esta luz nos olhos tristes e sonhadores desta mocinha? Quem fez subir o sangue às suas faces pálidas e murchas, quem fez com que o seu rosto suave mostre agora uma tal paixão? Porque o seu peito arfa? Quem foi que, assim tão de repente, trouxe força e vida e beleza ao  rosto da pobre menina, cujo sorriso suave brilha agora e se transforma num riso ardente". 

Página 19 do livro "Noites Brancas" de Fiódor Dostoiévski.

"Como já disse os personagens não nascem de um corpo materno, como os seres vivos, mas de uma situação, uma frase, uma metáfora que contém em embrião uma possibilidade humana fundamental que o autor imagina não ter sido ainda descoberta, ou sobre a qual nada ainda foi dito de essencial. " 

Página 221 do livro "A insustentável leveza do ser" de Milan Kundera. 

quarta-feira, março 07, 2012

Mais inclusão na UFRGS


Texto retirado da edição de Março/2012 do Jornal da UFRGS


Uma mudança feita pelo Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão (CEPE) no processo seletivo de 2012 fez com que mais redações dos candidatos cotistas fossem avaliadas, aumentando, com isso, as chances de ocupação das vagas. Apesar de todo o impacto inclusivo no ingresso de alunos de escolas públicas e negros desde 2008 através das cotas, havia um déficit grande em relação à ocupação das vagas ofertadas, principalmente no caso dos autodeclarados negros.

 Tal medida teve o objetivo de adequar o vestibular ao Programa de Ações Afirmativas da UFRGS, ou seja, trouxe no seu bojo a intenção de concretizar a política de cotas. Podemos dizer que, com o ingresso de mais alunos autodeclarados negros, inclusive nos cursos mais procurados, a Decisão 134/2007 que institui a reserva de vagas começa a ser efetivada.

 O acontecido ganhou grande repercussão na mídia gaúcha: foram publicadas matérias acerca do aumento do número de alunos autodeclarados negros ingressando em cursos “nobres”, como medicina e direito, sobre a possível dificuldade de esses alunos acompanharem os cursos ou se formarem e até enquetes sobre como os cidadãos veem o fato de a UFRGS “baixar a exigência para as cotas raciais”.

 Não se reduziu a exigência para preencher as cotas raciais, o que ocorreu foi uma mudança no sistema de selecionar as redações a serem avaliadas, reparando um processo que pré-eliminava o candidato cotista antes mesmo de sua redação ser avaliada. Basta optar pelo prisma que se quer olhar: se se entende que as cotas são um favor, fala-se em “baixar exigência”; se há, entretanto,  a compreensão de que elas são um direito social conquistado, tratamos como uma correção da dinâmica da política.

 Entendo que toda busca por imparcialidade feita ao entrevistar professores, alunos e mostrar a trajetória de cotistas não retira o caráter enviesado da cobertura feita. A inculcação de dilemas ilegítimos e de problemas tangenciais marca o desserviço feito por algumas reportagens. Os órgãos de imprensa hegemônicos têm toda liberdade para ter suas opiniões acerca de qualquer política pública, mas seria interessante que essa opinião ficasse clara, e não submersa na construção textual que induz o pensamento dos leitores.

Adjacente a esse processo está a dificuldade que parcela pequena e poderosa da sociedade gaúcha tem de lidar com o fato de que a maior universidade do sul do país não é mais um lugar exclusivo para pessoas brancas com poder aquisitivo. Ainda em 2007, por exemplo, antes das cotas, tínhamos 70% dos alunos ingressantes oriundos de escolas particulares e apenas 3% dos aprovados no vestibular eram autodeclarados negros de escola pública. Esse era um quadro vergonhoso para uma universidade pública da dimensão da UFRGS. As ações afirmativas mudaram significativamente esse cenário, democratizando minimamente o acesso.

 Com a renovação das cotas marcada para esse ano, vai se tentar remontar a aura de polêmica do defasado debate sobre ser contra ou a favor da reserva de vagas. Digo defasado pelo fato de que mais de 70 instituições públicas brasileiras têm algum modelo de ações afirmativas, e a maturidade do debate atinge estágios mais avançados que esse. Diferente do alarde midiático sobre a limitação dos cotistas para obter bom desempenho e se formar, o aprimoramento técnico e a confecção de políticas de permanência e acompanhamento qualificadas são as metas das universidades no que tange às cotas.

Ainda impressiona como tanto o mito do mérito quanto o de que o vestibular é um meio pleno de avaliação estão presentes no imaginário da comunidade acadêmica e da sociedade. A medida que efetiva as cotas e amplia a diversidade na universidade, além de fazê-lo, coloca em xeque o mantra de que o vestibular é um modelo justo e legítimo de avaliar se a pessoa vai ou não acompanhar seu curso ou se formar. Na UFRGS, no máximo 30% dos alunos se formam no tempo mínimo do curso; são minoria em todas as áreas de conhecimento. Inclusive, é por essa razão que têm o direito de se formar no dobro do tempo de duração de seu curso. O desafio da universidade é dar condições para que todos os alunos se formem no tempo adequado, e não somente, os cotistas.

 O que temos visto, nos primeiros resultados de desempenho, é que qualquer avaliação feita com apenas cinco anos de cotas é prematura e limitada, tendo em vista que, pela média geral, poucos cotistas irão se formar nesse período. As diferenças de acompanhamento acadêmico por área de conhecimento, os perfis de cursos e currículos ainda não permitem um olhar mais coeso e global. A pluralidade de critérios avaliativos das áreas, os graus distintos de dificuldade das disciplinas, a pouca representatividade quantitativa de cotistas em alguns cursos são outras variáveis que tornam complexa a avaliação.

A universidade vive um processo histórico de transformação e aprendizado que, além de ampliar a diversidade nos seus espaços, está desafiando a comunidade acadêmica a desenvolver outros parâmetros de trabalho pedagógico e de relações humanas.


Gregório Durlo Grisa
Doutorando em Educação na UFRGS e membro da Comissão de Avaliação do Programa de Ações Afirmativas.

terça-feira, março 06, 2012

Paquetá




Ah, se eu aguento ouvir
Outro não, quem sabe um talvez
Ou um sim
Eu mereço enfim.
É que eu já sei de cor
Qual o quê dos quais
E poréns, dos afins, pense bem
Ou não pense assim
Eu zanguei numa cisma, eu sei
Tanta birra é pirraça e só
Que essa teima era eu não vi
E hesitei, fiz o pior
Do amor amuleto que eu fiz
Deixei por aí
Descuidei dele, quase larguei
Quis deixar cair
(tsc tsc)
Mas não deixei
Peguei no ar
E hoje eu sei
Sem você sou pá furada.
Ai! não me deixe aqui
O sereno dói
Eu sei, me perdi
Mas ei, só me acho em ti.
Que desfeita, intriga, uó!
Um capricho essa rixa; e mal
Do imbróglio que quiproquó
E disso, bem, fez-se esse nó.
E desse engodo eu vi luzir
De longe o teu farol
Minha ilha perdida é aí
O meu pôr do sol.