sábado, abril 30, 2011

Alternância de Poder como instrumento de controle burguês

Por Raphael Tsavkko

Fonte Diário da Liberdade

Alternância de poder é o nome bonito que a burguesia, a elite, usa para garantir que nenhum governo de Esquerda possa durar mais do que o tempo que esta elite permitir.


Alternância de poder é a forma pela qual a burguesia faz parecer que respeita a democracia, criada por ela, a mesmo tempo em que nada muda. De forma inteligente, transformam a alternância em algo ligado apenas à pessoa, ao indivíduo, mas jamais ao partido ou ao grupo político em si.

A idéia de alternância é corrompida por uma elite interessada em se perpetuar, e ao mesmo tempo, acaba demonstrando uma falha tradicional das esquerdas, que é a insistência em fabricar líderes personalistas e não uma variedade de quadros de renome.

A elite fabrica um número quase infinito de candidatos, investe quanto dinheiro tiver interesse neles e pode trocá-los de tempos em tempos, fazendo parecer que houve alguma alternância, quando, na verdade, mudou a figura teoricamente no poder, mas não a classe por trás, não os que se beneficiaram do governo e muito menos mudou o modelo, a estrutura.

A esquerda, por outro lado, tem a tradição de ter um nome forte, um Chávez, um Morales (até mesmo um Vargas para determinados grupos) que, ao buscarem se re-eleger - pois dificilmente fazem sucessores tão fortes quanto eles - são acusados pelas forças conservadoras de desrespeitar o princípio sagrado da alternância de poder, simplesmente porque seu modelo de governo não corresponde aos anseios da elite.

O fato de "democracia" significar, em termos eleitorais, que quem tem mais votos vence, sempre que o vencedor se opõe, mesmo que minimamente, aos interesses da elite, é tachado de ditador (ou ditatorial).

Sempre aquele que se elege distante dos interesses da burguesia é chamado de perigo para esta mesma democoracia. É um perigo que alguém possa, dentro de um modelo criado para as elites, se perpetuar, chegar ao poder e ficar.

As elites apenas fingem que o poder está nas mãos do povo (apesar do voto ser igual pra todos, a mídia está nas mãos da elite, que pode manipular aqueles que votam), na verdade seu interesse é dar a impressão de que o povo decide, mas é seu poder econômico, representado pelo consumismo, pela propaganda, pelo mais puro marketing que (deve) prevalecer.

Quando isto não funciona, a democracia está em perigo.

Isto pode ser perfeitamente ilustrado por uma notícia recente do Opera Mundi, em que o candidato às eleições peruanas Alvaro Toledo, que acabou longe do segundo turno, a ser disputada por Keiko Fujimori e Ollanta humala, anuncia a todos que a "democracia está ameaçada" porque o candidato em primeiro lugar é um socialista aos moldes Chavistas, logo, não representa os interesses da elite que Toledo representa.

A direita brasileira também é incrível. Partidos hoje com nomes irônicos como "Democratas" ou "Partido Popular" foram base de sustentação do regime absolutamente anti-democrático conhecido como Ditadura Militar, mas posam de defensores eternos da democracia. Muitos relembram com saudosismo o período em que a alternância de poder se dava entre generais, sem qualquer participação popular.

Muitos destes hoje se declaram defensores da democracia (apenas porque ainda lhes garante lucros), mas não se cansaram de bradar que Lula era um ditador, por ter virado um objeto de adoração por parte de ampla camada da sociedade. Fernando Henrique pressionou o congresso para criar o instrumento da reeleição - que não existia antes - para que este pudesse continuar no poder. Por representar os interesses das elites, não houve reclamação.

A mídia criou o factóide de que Lula iria buscar uma segunda re-eleição, e foi uma gritaria.

Mesmo que Lula não tenha sido em si um opositor das elites - em muitos aspectos defendeu ou não se opôs a seus interesses -, seu discurso as desconcertava.

Exemplos semelhantes são inúmeros, inesgotáveis. A idéia central, enfim, é a de que a Alternância de Poder é um instrumento tipicamente burguês enquanto compreendido apenas como a troca de nomes, de figuras simbólicas, mas sem que haja qualquer modificação nas estruturas.

quarta-feira, abril 27, 2011

Papai, o que é Páscoa?

Por Luiz Fernando Veríssimo



Papai, o que é Páscoa?

- Ora, Páscoa é... bem... é uma festa religiosa!
Igual ao Natal?

- É parecido. Só que no Natal comemora-se o nascimento de Jesus, e na Páscoa, se não me engano, comemora-se a sua ressurreição.

- Ressurreição?
- É, ressurreição. Marta , vem cá !


- Sim?


- Explica pra esse garoto o que é ressurreição pra eu poder ler o meu jornal.
- Bom, meu filho, ressurreição é tornar a viver após ter morrido.

Foi o que aconteceu com Jesus, três dias depois de ter sido crucificado. Ele ressuscitou e subiu aos céus. Entendeu ?

- Mais ou menos... Mamãe, Jesus era um coelho?

- O que é isso menino? Não me fale uma bobagem dessas! Coelho...

Jesus Cristo é o Papai do Céu ! Nem parece que esse menino foi batizado!
Jorge, esse menino não pode crescer desse jeito, sem ir numa missa pelo menos aos domingos. Até parece que não lhe demos uma educação cristã !

Já pensou se ele solta uma besteira dessas na escola ? Deus me perdoe! Amanhã mesmo vou matricular esse moleque no catecismo!



- Mamãe, mas o Papai do Céu não é Deus ?

- É filho, Jesus e Deus são a mesma coisa. Você vai estudar isso no catecismo. É a Trindade... Deus é Pai, Filho e Espírito Santo.


- O Espírito Santo também é Deus?

- É sim.

- E Minas Gerais?

- Sacrilégio!!!

- É por isso que a ilha de Trindade fica perto do Espírito Santo?

- Não é o Estado do Espírito Santo que compõe a Trindade, meu filho, é o Espírito Santo de Deus. É um negócio meio complicado, nem a mamãe entende direito. Mas se você perguntar no catecismo a professora explica tudinho!

- Bom, se Jesus não é um coelho, quem é o coelho da Páscoa ?


- Eu sei lá ! É uma tradição. É igual a Papai Noel, só que ao invés de presente ele traz ovinhos.

- Coelho bota ovo ?

- Chega ! Deixa eu ir fazer o almoço que eu ganho mais !

- Papai, não era melhor que fosse galinha da Páscoa ?


- Era... era melhor, sim... ou então urubu.


- Papai, Jesus nasceu no dia 25 de dezembro, né ? Que dia ele morreu ?



- Isso eu sei: na Sexta-feira Santa.


- Que dia e que mês?

- (???) Sabe que eu nunca pensei nisso ? Eu só aprendi que ele morreu na Sexta-feira Santa e ressuscitou três dias depois, no Sabado de Aleluia.


- Um dia depois!

- Não três dias depois.


- Então morreu na Quarta-feira.


- Não, morreu na Sexta-feira Santa... ou terá sido na Quarta-feira de Cinzas ? Ah, garoto, vê se não me confunde!



- Morreu na Sexta mesmo e ressuscitou no sábado, três dias depois! Como ?

- Pergunte à sua professora de catecismo!

- Papai, porque amarraram um monte de bonecos de pano lá na rua?


- É que hoje é Sabado de Aleluia, e o pessoal vai fazer a malhação do Judas. Judas foi o apóstolo que traiu Jesus.


- O Judas traiu Jesus no Sábado ?

- Claro que não ! Se Jesus morreu na Sexta !!!


- Então por que eles não malham o Judas no dia certo ?

- Ui...


- Papai, qual era o sobrenome de Jesus?

- Cristo. Jesus Cristo.

- Só ?


- Que eu saiba sim, por quê?

- Não sei não, mas tenho um palpite de que o nome dele era Jesus Cristo Coelho. Só assim esse negócio de coelho da Páscoa faz sentido, não acha?


- Ai coitada

- Coitada de quem?

- Da sua professora de catecismo!










segunda-feira, abril 18, 2011

Lula, a metamorfose que ambula

O ex-presidente Lula, os jornais anunciaram com estardalhaço, iniciou com êxito uma nova e promissora carreira. Ele agora vende palestras. Um palestrante "motivacional" polivalente que oferece o seu talento aos mercados do mundo. O pacote de encomendas, mal começado o outono, se mostra promissor e recheado de clientes de elevadíssimo coturno.

A estréia foi aqui mesmo no Brasil, em São Paulo, no dia 2 de abril: uma "injeção de ânimo" para os vendedores da LG Eletronics, a gigante coreana. A primeira palestra internacional foi contratada por outro portento dos negócios, a Microsoft, e aconteceu em Washington, para onde o ex-presidente se deslocou em jato particular emprestado pela Coteminas, outra grande empresa. Em Acapulco, escala seguinte, o pagamento ficou por conta da Associação dos Bancos do México. Na segunda semana do novo trabalho, o ex-presidente pousou em Londres, com jato fretado, para palestrar sob encomenda da multinacional Telefónica.

Em eventos de tal natureza, fala mais alto o brilho que emana da simples presença da celebridade contratada. Fotografias, autógrafos, coisas do gênero. Trata-se de um ritual onde, ao invés do conteúdo das palestras, o que importa mesmo é a celebração das afinidades. A LG, ao lançar novos produtos, reverencia no palestrante a explosão do consumo na "linha branca". A Microsoft o exibe como exemplo no "Fórum de Líderes do Setor Público para a América Latina e Caribe". Os banqueiros do México e a multinacional da telefonia buscam realçar o que consideram modelar no tratamento dispensado ao capital financeiro e na privatização de serviços públicos.

A remuneração dos "animadores" de tão seletos auditórios nunca é revelada. No entanto, os especialistas que organizam tais eventos afirmam que o ex-presidente assumiu a condição de palestrante mais caro do Brasil. É mais um espaço em que, fazendo a mesma coisa, o Lula produz um rendimento maior do que o Fernando Henrique. Cobra, dizem, duzentos mil reais por palestra no Brasil e até 500 mil no exterior. O ex-presidente, a ser verdade o que está nos jornais, já embolsou mais de um milhão de reais só nas duas primeiras semanas de abril. Se já não é, vai ficar rico.

Não se trata, claro, de criticar a escolha atual do Lula. A opção preferencial pelos ricos vem de antes, da guinada programática operada em seu primeiro governo, e já mereceu a crítica de muitos. O doloroso da novidade de agora é constatar a consolidação de um padrão de política. Além do sindicalismo de resultados, da propaganda suja em campanha eleitoral e até do assassinato em série, essa moda de ex-presidente virar palestrante de luxo é mais uma manifestação do processo de "americanização" da sociedade brasileira.

O Lula fará o que o Fernando Henrique já faz. E a escolha de ambos não passa de uma decorrência lógica e natural da postura adotada pelos dois quando governantes. Eles recebem agora a gratidão e o reconhecimento daqueles setores que se beneficiaram muitíssimo com as políticas postas em prática por seus respectivos governos.

Aliás, a nova carreira do Lula o coloca como colega não apenas de FHC. Ele passa a fazer parte de um verdadeiro time de ex-líderes que, na chefia de governos, agiram como artífices da subordinação da política aos desígnios dos donos do poder econômico. Assim como Lula e FHC, Bill Clinton, Tony Blair, Mikhail Gorbachev, entre outros, também são palestrantes de luxo, pagos não por acaso a peso de ouro.

Social-democratas, trabalhistas, socialistas e até comunistas, oriundos de grupamentos políticos críticos da exploração capitalista, eles governaram como convertidos ao credo financeiro, cristãos novos de uma cruzada cujo deus é o dinheiro. O que o historiador Tony Judt usou para definir Tony Blair, sem dúvida, vale para o grupo inteiro: "ele não acredita em privatização, mas também não é contra ela... ele apenas gosta de gente rica".

No começo da sua carreira anterior, quando deixava o trampolim sindical para a disputa no campo aberto da política, o Lula já fazia sucesso como palestrante. Em assembléias, caravanas, comícios e até em reuniões freqüentadas pela nata da nossa melhor intelectualidade ele dizia coisas muito interessantes e, também ao contrário de agora, não cobrava nada.

Em 1981, no discurso da primeira convenção nacional do PT, ele afirmava que o partido então criado, "uma inovação histórica", viria para livrar a classe trabalhadora da condição de "massa de manobra dos políticos da burguesia". Dizia que o sindicato é ferramenta adequada para melhorar as relações entre o capital e o trabalho, mas o partido é para ir além: "queremos que os trabalhadores sejam os donos dos meios de produção e dos frutos do seu trabalho". Afirmava saber que "o mundo caminha para o socialismo" e que o PT, com sua mística radical, não tinha como objetivo "buscar paliativos para as desigualdades do capitalismo".

Nenhum banqueiro ou multinacional de qualquer área cometeria o equívoco de colocar seus convidados para ouvir o que falava o Lula da fase anterior. Intuitivo talentoso, empirista radical, pragmático até a medula, o ex-presidente está em outra, fala "outras palavras". Afinal, ele nunca escondeu de ninguém a sua condição de metamorfose ambulante. O discurso inaugural da carreira anterior serve para mostrar o tamanho da mudança e para onde a metamorfose ambula.

Léo Lince é sociólogo.

sexta-feira, abril 15, 2011

Elogio do Comunismo


Ele é razoável. Todos o compreendem. Ele é simples.
Você, por certo, não é nenhum explorador. Você pode entendê-lo.
Ele é bom para você. Informe-se sobre ele.
Os idiotas dizem-no idiota e os porcos dizem-no porco.
Ele é contra a sujeira e contra a estupidez.
Os exploradores dizem-no um crime,
mas nós sabemos
que ele é o fim dos crimes;
ele não é a loucura e sim
o fim da loucura.
Não é o caos e sim
uma nova ordem.
Ele é a simplicidade.
O difícil de fazer.


Bertolt Brecht

domingo, abril 03, 2011

Quando matar se torna prazer

Imagens de militares norte-americanos matando civis indefesos no Sul do Afeganistão evoca o temor de um novo Abu Ghraib

Militar sorri frente à sua vítima. Os próprios soldados registraram as cenas<br /><b>Crédito: </b> Reprodução / www.rolingstone.com / cp
Militar sorri frente à sua vítima. Os próprios soldados registraram as cenas
Crédito: Reprodução / www.rolingstone.com / cp


Washington - Em fevereiro de 2009, o então recém-empossado presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, determinou o envio de um reforço de 17 mil soldados para o Afeganistão. O novo contingente teve por base duas grandes formações: a 2 Brigada Expedicionária de Fuzileiros Navais, sediada em Camp Lejeune, Carolina do Norte, e a 5 Brigada Stryker da 2 Divisão de Infantaria, de Fort Lewis, Washington. Aproximadamente um ano depois, um grupo de soldados desta segunda formação viria a ser protagonista de um dos casos mais nefastos e brutais de violação dos direitos humanos ocorridos em quase dez anos de guerra no país asiático.

Ao longo dos primeiros cinco meses de 2010, um pelotão da 5 Brigada Stryker, que opera em Kandahar, no Sul afegão, teria assassinado, de forma aleatória e gratuita, civis afegãos desarmados. Além disso, o grupo é acusado de mutilar vários dos cadáveres em um remoto vilarejo da região, chamado de Mohammad Kalay. Não satisfeitos, os militares do denominado "Time da Morte" registraram a matança em dezenas de fotos, tendo chegado a postar algumas delas em sites de relacionamentos da Internet.

Segundo informação da revista norte-americana Rolling Stone, antes de os crimes de guerra tornarem-se públicos o Pentágono tomou medidas extraordinárias para suprimir as fotos da rede - desenvolvendo um enorme esforço para encontrar todos os arquivos e neutralizá-los antes que pudessem deflagrar um escândalo na escala que marcou os casos de tortura a prisioneiros iraquianos por soldados estadunidenses na prisão de Abu Ghraib, localizada em Bagdá.

Muitas destas imagens - cerca de 150 delas -, porém, foram obtidas e divulgadas pela Rolling Stone e pela revista alemã Der Spiegel. A publicação norte-americana chegou a disponibilizar as fotos em seu website, juntamente com uma reportagem especial sobre o assunto, datada de 27 de março e assinada pelo jornalista Mark Boal. Segundo a Rolling Stone, as imagens "retratam a cultura de uma linha de frente entre as tropas dos EUA em que a morte de civis inocentes é vista como motivo de comemoração".

Assim que a publicação alemã Der Spiegel chegou às bancas, no dia 21, a secretária de Estado Hillary Clinton teria telefonado ao governo afegão para falar sobre o caso. "A maioria das pessoas dentro da unidade não gostava do povo afegão", disse um dos soldados aos investigadores do Exército depois que os crimes vieram à tona. "Toda mundo diria que eles são selvagens."

obs: reportagem retirada do Correio do povo de 03/04/2011

sexta-feira, abril 01, 2011

A Ditadura brasileira ainda viva – a cidadania torturada

Por Alexandre Haubrich, jornalista, editor do blog Jornalismo B (http://jornalismob.wordpress.com / http://twitter.com/jornalismob / http://twitter.com/alexhaubrich)

Aos quatro anos de idade, Edson Teles entrou em um prédio na Rua Tutóia, no bairro do Paraíso, em São Paulo para encontrar os pais, que não via há alguns dias. Simpáticos nomes o da rua e o do bairro. Edson ouviu a voz da mãe chamando seu nome, mas, quando se virou, não reconheceu o rosto e o corpo que portavam aquela voz. Em seguida, encontrou o pai, em outra sala, sentado em uma cadeira aparentemente normal para uma criança. Mas havia cintas de couro nos braços da cadeira. Era 1972, e Edson visitava os pais no DOI-CODI, centro da repressão da Ditadura Militar brasileira. “Meu filho perguntou 'por que o pai é verde?' e minha filha perguntou por que eu estava azul”, contou anos atrás a mãe de Edson, Maria Amélia de Almeida Teles.

Na última semana, em um seminário em Porto Alegre, Edson desabafou: “me envergonho de ser brasileiro. Oferecemos o Brasil para ser paraíso dos torturadores. Se torturarem em nome do Estado, aqui são anistiados”. E Edson e sua irmã Janaína não são um caso raro. Muitas crianças viram seus pais serem torturados pelo Estado brasileiro que, entre 1964 e 1985, impôs a seus cidadãos o fim da cidadania e de qualquer possibilidade de dignidade. Socos e pontapés eram carinhos. A violência vinha através de choques elétricos por todo o corpo, afogamentos, fuzilamentos simulados. Homens e mulheres, muitas vezes nus, eram pendurados em paus-de-arara, humilhados de todas as formas, reduzidos a nada. E se Edson e Janaína não são um caso raro, e tampouco a tortura a que foram submetidos seus pais foi um caso raro, também não foi a tortura a única forma pela qual cidadãos brasileiros foram agredidos por seu próprio Estado.

Assassinatos e sequestros também eram comuns. Sim, hoje ainda são. Mas, naqueles anos, quem cometia esses crimes era o Estado, e os cometia como Estado, não apenas através de indivíduos que corrompiam as instituições. O Estado e seus agentes eram os criminosos, os assassinos, sequestradores, torturadores. Brasil nunca mais. Muitos cidadãos brasileiros foram obrigados a fugir do país. Deixaram para trás seu lugar e seus familiares, amigos, colegas. Deixaram para trás toda uma vida para começarem a construir outra longe daqui.

O silêncio, para os militares e civis que referendaram o Golpe de 1964, era a causa pela qual lutavam. Gritos? Permitidos apenas nas salas de tortura, e apenas gritos de dor. Parte significativa da imprensa apoiou a Ditadura de seu início até as portas de seu fim, quando percebeu que, ou abandonava o moribundo, ou morreria junto. A outra parte da imprensa, porém, a parte séria, viu muitos de seus representantes torturados, desaparecidos ou acuados. O fetiche do silêncio.

Derrubada a democracia que se aprofundava no governo João Goulart, os golpistas não queriam mais saber de política, apenas de poder. Um professor falando sobre política em aula poderia ser denunciado por um aluno como terrorista. A mesma coisa em conversas de bar ou de qualquer lugar. O risco de tortura, assassinato ou “desaparecimento” sempre iminente. Se antes a política já era afastada do povo, em 64 o Estado tirou do povo o direito de se aproximar da política.

Com a chamada “abertura democrática” da década de 1980, não acabou-se verdadeiramente com a Ditadura. Até hoje suas sobras contaminam a vida dos brasileiros. A herança da Idade das Trevas tupiniquim está no autoritarismo e na violência policial, na despolitização popular, na agressividade da direita, na ignorância, no conservadorismo moral preconceituoso, racista, machista e homofóbico. Esses resquícios sobrevivem também no imaginário demente de alguns políticos e alguns militares que anseiam pela reinstitucionalização de todos esses absurdos.

Continuam dominando importantes setores do país as pessoas que financiaram e apoiaram de diversas formas a Ditadura Militar. Grandes empresários, destacados políticos, graduados militares. Os donos da comunicação brasileira também entram nesse bolo. É por tudo isso que, enquanto nossos países vizinhos agem para limpar a sujeira deixada por suas respectivas ditaduras – sem varrer essa sujeira para baixo do tapete –, aqui o silêncio segue imposto.

É para punir os responsáveis pelo massacre da cidadania brasileira que é necessário revisar a Lei da Anistia, assinada em 1979, que, ao mesmo tempo em que beneficiou quem lutava por um Estado democrático, absolveu automaticamente as pessoas que, em nome do Estado brasileiro, cometeram todos os tipos de crime. A tortura e o assassinato em nome do Estado foram permitidos, o que configura uma arbitrariedade e um desrespeito aos brasileiros representados por esse Estado. Os cidadãos que lutaram contra a Ditadura Militar já foram fortemente punidos das mais diversas formas ainda durante aquele período. Os representantes dessa Ditadura, não. Além disso, a Lei da Anistia foi aprovada pelos opositores ao regime com uma arma na cabeça. Da mesma forma que obtinham confissões através da tortura, os governantes de então impuseram sua própria imunidade como condição para deixarem o povo brasileiro ser re-empoderado minimamente.

A abertura imediata de todos os arquivos da Ditadura Militar e a ampla divulgação de seu conteúdo, assim como o trabalho de resgate histórico do que vivemos, é outra obrigação do Estado brasileiro. Os cidadãos têm o direito de conhecer sua própria história, a história de seu país. Se o Estado é uma instituição da sociedade, e esta é formada pelo conjunto dos indivíduos, o Estado somos nós, e nós temos o direito de conhecer a verdade e o dever de lutar por esse direito. Para que não corramos o risco de retornar àquela situação de terror precisamos saber detalhadamente o que nos levou a ela o que a manteve por tanto tempo. Só assim, com a punição dos gerentes da nossa Idade das Trevas e com o direito à verdade, poderemos realmente encarar de frente as heranças daquele tempo que ainda nos assombram.