quarta-feira, fevereiro 27, 2013

Sem fim

Zoé era só lágrimas. Estava experimentando a dor de ser deixada por alguém que dizia que lhe amava. O fato de ser amada, nesse caso, aguçava a dor, a tornava incompreensível. Quem abandona o outro por amor? A casa de Zoé alagou com um caldo cuja mistura tinha mágoa, raiva, desejo, medo, paixão e saudade. Na catarse ela tinha dificuldade de ler qual o ingrediente se destacava, qual era o sabor final de quando se afogava. Todo fim, mesmo não sendo o fim, tem um que de trágico, de catastrófico e de cômico. Zoé queria colocar em suspensão o coração, distraí-lo como as mãe fazem quando as crianças se machucam.

Essa era uma tarefa árdua, tendo em vista que em qualquer movimento que Zoé fazia pela casa, via um presente que ganhou, se esbarrava com uma compra em comum, sentia um cheiro dividido, ouvia um som que a fazia lembrar. É impossível fugir dessa fase, os livros lidos juntos, as viagens, as brigas, as palavras que tinham sentido específico só para o casal, tudo parecia formar aqueles clipes bonitinhos com músicas da internet na cabeça de Zoé. Ela temia perder as energias para continuar seus afazeres profissionais, mesmo sabendo que os seres humanos passam por momentos como esse, tinha receio de não encontrar ninguém que a confortasse tanto quanto aquela pessoa. 

Pensou em se mudar, rever suas amizades, dar uma radicalizada no visual. Momentos como esses, que deveriam ser só para analisar a relação afetiva, ganham proporção existencial. O amor é como o tempo, ao mesmo tempo que é controlado e organizado, também é incomensurável e inexorável. Faz nada virar tudo e tudo se fazer nada. Zoé tinha planos, e se assustava com a ideia de reformulá-los, sentia que faltava um pedaço. Ligou para um amigo que repetia:
- isso acontece, vai passar, como tudo.
É verdade, mas como é fácil dizer isso de fora, sem sentir. Nessa hora, Zoé queria entender o porque, já que nada justificava ela ter sido abandonada por quem a amava, por quem lhe fazia tão bem e vice-versa. A noite ganhava corpo e a casa de Zoé gelava, mais calma e quase sonâmbula ela ouve o barulho da chave abrindo a porta.
De olhos fechados e coberta com a manta do casal no escuro da sala, Zoé escuta a voz embargada dizer:
- eu errei, fui embora de medo de tanto gostar, mas bastou poucas horas pra perceber que não vivo sem ti.
Leila voltara!

terça-feira, fevereiro 26, 2013

Há(talho)

Santo solto
alado em sonho
corpo gasto
ocupa espaço

Talho forte no sentir
incide e acalma
enfeita a palavra
que é a calha limpa da alma



Gregório Grisa


quinta-feira, fevereiro 21, 2013

O eterno artesanato da felicidade

As coisas mais difíceis de serem feitas são as que realmente desejamos. E são difíceis não só porque somos ambiciosos, mas também porque junto do desejo mora o medo de conseguir, de alcançar. Manter longe o objetivo desejado é justificar para o inconsciente a ação de buscar, a trajetória da sentido pra vida e,  por vezes, nos atemos nela por estarmos seguros no caminho. Porém, corre-se o risco de atolar na estrada ou passar do cruzamento em que deveríamos mudar a rota. 
Estamos em um tempo de afirmação individual, temos de ser inovadores, competitivos, empreendedores, independentes e por nos exigirmos resultados imediatos estamos deixando de lado elementos importantes. Sempre que essa busca desenfreada for conduzida de modo míope, teremos dificuldades de notarmos os efeitos que nossas ações, nossas palavras e nossas posturas produzem no mundo e nos outros. Nossa insegurança respinga, nossa ansiedade transborda, a impaciência que atinge nos torna reféns dos atingidos. Mas não pra sempre.
Nessa soma infinita de coisas que nos constitui é compreensível que não controlemos nem entendamos tudo que nos move, entretanto, nosso mundo ao redor tem escalas de pessoas e coisas queridas e próximas que devem ser prioridade da nossa sensibilidade, do nosso afeto e cuidado. 
Há também as prioridades da nossa ira, ou da raiva, é inegável, esses sentimentos existem. Essas prioridades devem ser coisas e pessoas distantes, aquelas que temos raro contato, que discordamos, que até enojamos. Porque distantes? Pra que não corramos o risco de sermos injustos e confundir as esferas da vida, o afeto e a cordialidade são para o cotidiano, para o "de sempre". Sejamos bravos somente com o raro, o injusto e o distante pra não nos acostumarmos a ser assim com quem não merece e, principalmente, conosco mesmo. 
A gente escreve nossa história, não há clichê mais certo que esse, na maioria dos casos que sentimos impotência para alterar ou reorientar alguns aspectos da vida, não estamos soltos nas mãos do destino ou sem domínio próprio. Só estamos administrando nossa incompletude, administrando com alguma dificuldade, às vezes, mas estamos constantemente nos talhando em contornos de aprender. E é nesse artesanato da razão e da emoção que caímos, que teimamos, que erramos, que reavaliamos, que melhoramos e avançamos. 
Entender e sentir esses passos, prestar atenção nos nossos próprios esforços silenciosos e no dos outros é que é viver. Aprender é diferente de decorar, saber não é só registrar e repetir, mas transformar em realidade o idealizado. Amar é mais que dizer, é materializar em atitudes, gestos e afetos o  refletido e amadurecido na consciência. Todo dia é dia de, o compromisso com a vida e com os outros passa também por situações desconfortáveis e por desafiar nossos orgulhos e crenças. O alento é que esses momentos são minoritários e que, quando as pessoas se gostam, a felicidade também respinga, transborda e nos atinge em cheio.


Gregório Grisa

21/02/2013

sexta-feira, fevereiro 15, 2013

Falso Brilhante


Por Fabrício Carpinejar 

Há o condicionamento de que amor mesmo, de verdade, é gastar metade do salário para a esquadrilha da fumaça assinar o nome da namorada pelos céus de Porto Alegre.

Temos uma noção de que amor mesmo, de verdade, é exibicionista. Depende de surpresas públicas de afeto como serenata na janela, carro de som, anúncios na TV, outdoors com pedido de casamento.

Mulheres e homens se desesperam por um amor público, encantado, de estádio cheio, e cobram provas mirabolantes de seus parceiros. Reclamam da rotina, da previsibilidade, e exigem declarações barulhentas para despertar a inveja do próximo.

O amor espalhafatoso recebe a fama, mas o amor contido é o mais profundo.

Ao procurar o amor empresarial, desprezamos o amor funcionário público, que atende às ligações e escreve nossos memorandos.

Ao perseguir o amor de cinema, desdenhamos o amor de teatro, de quem encena a peça todo dia ao nosso lado, sempre com uma interpretação nova a partir das falas iguais.

Ao cobiçar o amor sensual de lareira e restaurante, apagamos a delícia de comer direto nas panelas, sem pratos, sem medo do garçom.

Ao perseguir a aventura, negamos a permanência.

Preocupados em ser reconhecidos mais do que amar, esquecemos a verdade pessoal e despojada do nosso relacionamento. Recusamos o amor constante, o amor cúmplice.

Não valorizamos a passionalidade silenciosa, a passionalidade humilde, a passionalidade generosa, a passionalidade tímida, a passionalidade artesanal.

O passional pode ser discreto na aparência e prático na ternura.

O amor mais contundente é o que não precisa ser visto para existir. E continuará sendo feito apesar de não ser reparado.

O amor real é secreto. É conservar um pouco de amor platônico dentro do amor correspondido. É reservar as gavetas do armário mais acessíveis para as roupas dela, é deixar que sua mulher tome a última fatia da pizza que você mais gosta, é separar as roupas de noite para não acordá-la de manhã. E nunca falar que isso aconteceu. E não jogar na cara qualquer ação. E não se vangloriar das próprias delicadezas.

Buscá-la no trabalho é o equivalente a oferecer um par de brilhantes. Esperá-la com comida pronta é o equivalente a acolhê-la com um buquê de rosas vermelhas.

São demonstrações sutis, que não dá para contar para os outros, mas que contam muito na hora de acordar para enfrentar a vida.

terça-feira, fevereiro 05, 2013

“Próxima disputa global será pela privacidade das pessoas”

Por Julian Assange no Prefácio de Cypherpunks – Liberdade e o Futuro da Internet, livro recém lançado pela Editora Boitempo. 

A luta do WikiLeaks é uma luta de muitas facetas. Em meu trabalho como jornalista, lutei contra guerras e para forçar os grupos poderosos a prestarem contas ao povo.

Em muitas ocasiões, manifestei-me contra a tirania do imperialismo, que hoje sobrevive no domínio econômico-militar da superpotência global.

Por meio desse trabalho, aprendi a dinâmica da ordem internacional e a lógica do império. Vi países pequenos sendo oprimidos e dominados por países maiores ou infiltrados por empreendimentos estrangeiros e forçados a agir contra os próprios interesses.

Vi povos cuja expressão de seus desejos lhes foi tolhida, eleições compradas e vendidas, as riquezas de países como o Quênia sendo roubadas e vendidas em leilão a plutocratas em Londres e Nova York. Expus grande parte disso e continuarei a expor, apesar de ter me custado caro.

Essas experiências embasaram minha atuação como um cypherpunk. Elas me deram uma perspectiva sobre as questões discutidas nesta obra, que são de especial interesse para os leitores da América Latina. O livro não explora essas questões a fundo.

Para isso seria necessário outro – muitos outros livros. Mas quero chamar a atenção para essas questões e peço que você as mantenha em mente durante a leitura.

Fibras ópticas

Os últimos anos viram o enfraquecimento das velhas hegemonias. Do Magrebe até o Golfo Pérsico, as populações têm combatido a tirania em defesa da liberdade e da autodeterminação.

Movimentos populares no Paquistão e na Malásia acenam com a promessa de uma nova força no cenário mundial.

E a América Latina tem visto o tão esperado despontar da soberania e da independência, depois de séculos de brutal dominação imperial. Esses avanços constituem a esperança do nosso mundo, enquanto o Sol se põe na democracia no Primeiro Mundo.

Vivenciei em primeira mão essa nova independência e vitalidade da América Latina quando o Equador, o Brasil e a região se apresentaram em defesa dos meus direitos depois que recebi asilo político.

A longa luta pela autodeterminação latino-americana é importante por abrir o caminho para que o resto do mundo avance na direção da liberdade e da dignidade. Mas a independência latino-americana ainda está engatinhando.

Os Estados Unidos ainda tentam subverter a democracia latino-americana em Honduras e na Venezuela, no Equador e no Paraguai. Nossos movimentos ainda são vulneráveis. É vital que eles tenham sucesso. Portanto, devem ser protegidos.

É por isso que a mensagem dos cypherpunks é de especial importância para o público latino-americano. O mundo deve se conscientizar da ameaça da vigilância para a América Latina e para o antigo Terceiro Mundo.

A vigilância não constitui um problema apenas para a democracia e para a governança mas também representa um problema geopolítico.

A vigilância de uma população inteira por uma potência estrangeira naturalmente ameaça a soberania. Intervenção após intervenção nas questões da democracia latino-americana nos ensinaram a ser realistas. Sabemos que as antigas potências colonialistas usarão qualquer vantagem que tiverem para suprimir a independência latino-americana.

Este livro discute o que acontece quando corporações norte-americanas como o Facebook têm uma penetração praticamente completa na população de um país, mas não discute as questões geopolíticas mais profundas.

Um aspecto importante vem à tona se levamos em consideração as questões geográficas. Para tanto, a ideia do “exército ao redor de um poço de petróleo” é interessante.

Todo mundo sabe que o petróleo orienta a geopolítica global. O fluxo de petróleo decide quem é dominante, quem é invadido e quem é excluído da comunidade global. O controle físico até mesmo de um segmento de oleoduto resulta em grande poder geopolítico. E os governos que se veem nessa posição são capazes de conseguir enormes concessões.

De tal forma que, em um só golpe, o Kremlin é capaz de condenar o Leste Europeu e a Alemanha a um inverno sem aquecimento. E até a perspectiva de Teerã abrir um oleoduto do Oriente até a Índia e a China é um pretexto para Washington manter uma lógica belicosa.

A mesma coisa acontece com os cabos de fibra óptica. A próxima grande alavanca no jogo geopolítico serão os dados resultantes da vigilância: a vida privada de milhões de inocentes.

Não é segredo algum que, na internet, todos os caminhos que vão e vêm da América Latina passam pelos Estados Unidos. A infraestrutura da internet direciona a maior parte do tráfego que entra e sai da América do Sul por linhas de fibra óptica que cruzam fisicamente as fronteiras dos Estados Unidos.

Palco africano

O governo norte-americano tem violado sem nenhum escrúpulo as próprias leis para mobilizar essas linhas e espionar seus cidadãos. E não há leis contra espionar cidadãos estrangeiros.

Todos os dias, centenas de milhões de mensagens vindas de todo o continente latino-americano são devoradas por órgãos de espionagem norte-americanos e armazenadas para sempre em depósitos do tamanho de cidades.

Dessa forma, os fatos geográficos referentes à infraestrutura da internet têm consequências para a independência e a soberania da América Latina. Isso deve ser levado em consideração nos próximos anos, à medida que cada vez mais latino-americanos entrarem na internet.

O problema também transcende a geografia. Muitos governos e militares latino-americanos protegem seus segredos com hardware criptográfico. Esses hardwares e softwares embaralham as mensagens, desembaralhando-as quando chegam a seu destino.

Os governos os compram para proteger seus segredos, muitas vezes com grandes despesas para o povo, por temerem, justificadamente, a interceptação de suas comunicações pelos Estados Unidos.

Mas as empresas que vendem esses dispendiosos dispositivos possuem vínculos estreitos com a comunidade de inteligência norte-americana.

Seus CEOs e funcionários seniores são matemáticos e engenheiros da NSA, capitalizando as invenções que criaram para o Estado de vigilância.

Com frequência seus dispositivos são deliberadamente falhos: falhos com um propósito. Não importa quem os está utilizando ou como --os órgãos de inteligência norte-americanos são capazes de decodificar o sinal e ler as mensagens.

Esses dispositivos são vendidos a países latino-americanos e de outras regiões que desejam proteger seus segredos, mas na verdade constituem uma maneira de roubar esses segredos.

Os governos estariam mais seguros se usassem softwares criptográficos feitos por cypherpunks, cujo design é aberto para todos verem que não se trata de uma ferramenta de espionagem, disponibilizados pelo preço de uma conexão com a internet.

Enquanto isso, os Estados Unidos estão acelerando a próxima grande corrida armamentista. A descoberta do vírus Stuxnet, seguida da dos vírus Duqu e Flame, anuncia uma nova era de softwares extremamente complexos feitos por Estados poderosos que podem ser utilizados como armas para atacar Estados mais fracos.

Sua agressiva utilização no Irã visa a prejudicar as tentativas persas de conquistar a soberania nacional, uma perspectiva condenada pelos interesses norte-americanos e israelenses na região.

Antigamente, o uso de vírus de computador como armas ofensivas não passava de uma trama encontrada em livros de ficção científica.

Hoje se trata de uma realidade global, estimulada pelo comportamento temerário da administração Obama, que viola as leis internacionais.

Agora, outros Estados seguirão o exemplo, reforçando sua capacidade ofensiva como um meio de se proteger. Neste novo e perigoso mundo, o avanço da iniciativa cypherpunk e da construção da ciberpaz é extremamente necessário.

Os Estados Unidos não são os únicos culpados. Nos últimos anos, a infraestrutura da internet de países como a Uganda foi enriquecida pelo investimento chinês direto.

Empréstimos substanciais estão sendo distribuídos em troca de contratos africanos com empresas chinesas para construir uma infraestrutura de backbones de acesso à internet ligando escolas, ministérios públicos e comunidades ao sistema global de fibras ópticas.

A África está entrando na internet, mas com hardware fornecido por uma aspirante a superpotência estrangeira. Há o risco concreto de a internet africana ser usada para manter a África subjugada no século XXI, e não como a grande libertadora que se acredita que a internet seja.

Mais uma vez, a África está se transformando em um palco para os confrontos entre as potências globais dominantes. As lições da Guerra Fria não devem ser esquecidas ou a história se repetirá.

Momento certo

Essas são apenas algumas das importantes maneiras pelas quais a mensagem deste livro vai além da luta pela liberdade individual.

Os cypherpunks originais, meus camaradas, foram em grande parte libertários.

Buscamos proteger a liberdade individual da tirania do Estado, e a criptografia foi a nossa arma secreta. Isso era subversivo porque a criptografia era de propriedade exclusiva dos Estados, usada como arma em suas variadas guerras.

Criando nosso próprio software contra o Estado e disseminando-o amplamente, liberamos e democratizamos a criptografia, em uma luta verdadeiramente revolucionária, travada nas fronteiras da nova internet. A reação foi rápida e onerosa, e ainda está em curso, mas o gênio saiu da lâmpada.

O movimento cypherpunk, porém, se estendeu além do libertarismo.

Os cypherpunks podem instituir um novo legado na utilização da criptografia por parte dos atores do Estado: um legado para se opor às opressões internacionais e dar poder ao nobre azarão.

A criptografia pode proteger tanto as liberdades civis individuais como a soberania e a independência de países inteiros, a solidariedade entre grupos com uma causa em comum e o projeto de emancipação global.

Ela pode ser utilizada para combater não apenas a tirania do Estado sobre os indivíduos, mas a tirania do império sobre a colônia. Os cypherpunks exercerão seu papel na construção de um futuro mais justo e humano. É por isso que é importante fortalecer esse movimento global.

Acredito firmemente nessa mensagem, escrita nas entrelinhas deste livro, apesar de não discutida em grandes detalhes. A mensagem merece um livro à parte, do qual me ocuparei quando chegar o momento certo e minha situação permitir. Por enquanto, espero que baste chamar a atenção para essa questão e pedir que você a mantenha em mente durante a leitura.

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[Julian Assange é o mentor do site WikiLeaks]