sexta-feira, dezembro 31, 2010

Desafios da universidade

por Gregório Grisa

Com a expansão das vagas e a adoção de ações afirmativas, a universidade brasileira vive hoje o maior desafio de sua história. Esses fatos marcam o início do ainda tímido processo de democratização do ensino superior que não se restringe mais aouniverso do acesso e da permanência de alunos de grupos sociais que historicamente não freqüentavam a universidade.

Mais de noventa instituições no Brasil adotaram algum tipo de política afirmativa de reserva de vagas. Essas medidas atendem a vários seguimentos sociais dependendo do modelo escolhido pela universidade ou pelo poder público. Há reserva de vagas, ou cotas como são mais conhecidas essas políticas, que contemplam a população negra, a população indígena, estudantes de escolas públicas, estudantes de baixa renda e outros.

Uma política de ação afirmativa não é sinônimo de cotas nas universidades, as cotas são uma modalidade de ação afirmativa, isto é, reservar vagas para um grupo social específico é somente uma dentro de várias possibilidades de se concretizar uma ação afirmativa. O que está colocado para a universidade hoje, entre outras demandas, é a superação de dois mitos ou dois equívocos de interpretação que descrevo a seguir.

O primeiro refere-se à constante e insistente assertiva que circula nos corredores universitários, de que alunos cotistas ou de baixa renda estariam “baixando o nível de excelência das instituições”. Esse pensamento vem à tona a partir do momento que a formação do professor universitário é colocada em xeque. Isso mesmo! O professor mais “bem colocado” na escala do magistério é o que enfrenta o déficit formativo de tipo político, pedagógico e metodológico mais recente.

O modo de trabalhar com os alunos, de organizar o currículo, de planejar as disciplinas e de avaliar, via de regra, segue o mesmo daquela acadêmia que sempre foi ocupada por uma classe social e um grupo étnico. Entretanto, hoje a diversificação dos sujeitos existe e vem aumentando, começam a aparecer preconceitos adormecidos e as práticas engessadas na lógica tradicional passam a sofrer resistências. Há de se fazer uma inversão interpretativa no que se refere a essa sensação de perda de qualidade, a primeira pergunta a ser feita é: de que qualidade está se falando?

Acredito que a sensação de perda de qualidade no ensino ou na pesquisa se dá mais pelo fato da universidade contemporânea não conseguir responder as demandas que a sociedade a impõe. Os grandes problemas sociais, as mazelas ambientais e estruturais não encontram alternativas resolutivas na universidade e é daí que advém a sensação da perda da qualidade, e não do fato de grupos sociais historicamente excluídos passarem a freqüentar o ensino superior. Inclusive é com a chegada desses grupos que a universidade se munirá, caso encampe um processo de democratização valorizando as culturas populares, de elementos para melhor interpretar os desafios colocados pela sociedade nacional e regional.

O segundo mito é o de que a cultura considerada popular não pode conviver, mesclar-se e produzir conhecimento em alto nível. A noção de alta e baixa cultura é atrasada e justifica, entre outras coisas, o racismo institucional e o preconceito. A excelência acadêmica não é garantida pelo fato de ser desenvolvida por pessoas “de berço” e brancas — são essas que historicamente produzem ciência pelo fato de monopolizarem esse espaço como um dos seus principais privilégios sociais.

Devido a esse cenário, muitos especialistas da educação afirmam que a ciência tem cor no Brasil, e é branca, pois historicamente se exclui a população negra através de um cruel processo de exploração, sustentado contemporaneamente pelo discurso da baixa e da alta cultura ou pelo discurso da excelência. Há um padrão hegemônico que define o que é conhecimento de alto nível, assim como diz qual é a qualidade almejada pelas instituições.

Problematizar esse padrão e ao mesmo tempo tencionar a formação dos docentes universitários e gestores é condição sine qua non para encarar os desafios que a universidade está enfrentando. Os educadores brasileiros devem ficar atentos a esse tema para incluí-lo no Plano Nacional de Educação [PDF] que orientará as políticas da próxima década no país.

Fonte: Site Amálgama

sexta-feira, dezembro 24, 2010

Saco cheio de Papai Noel

Sexta-feira, 24/12/2010

Carlos Heitor Cony

Tempos natalinos provocam mão de obra suplementar em nosso cotidiano. Somos obrigados às confraternizações, aos votos de boas-festas, a dar e a receber presentes, um saco. A mensagem de solidariedade humana fica reduzida a uma mesa de churrascaria, ao chope quente e à picanha fatiada com batatas fritas engorduradas.

Os apelos comerciais, que antes da era eletrônica enchiam a nossa paciência, os jornais e revistas, os agressivos outdoors que poluíam o já poluído cenário urbano, invadem agora a telinha de nossos notebooks, oferecendo-nos em suaves prestações mensais aquilo de que não precisamos.

Em alguns países, a tradição de dar e receber presentes, transferida para 6 de janeiro, Dia de Reis, é mais lógica e tem um exemplo ilustre. Afinal, os magos levaram incenso, ouro e mirra e receberam em troca a oportunidade de seguirem a estrela que brilhou para eles nos céus da Judeia. Haveria algum sentido na atual troca de presentes.

Limparíamos o Natal da febre consumista a que estamos habituados. A grande festa da cristandade paganizou-se com símbolos nem sempre bonitos e sempre aleatórios. Olhar a cara do Bom Velhinho, borrado de Kodacolor, esbarrar em árvores de natal complicadíssimas, ouvir o “jingle bells” e o “Noite Feliz” por toda parte. Novamente, um saco.

Nada disso facilita o mergulho que devemos fazer em nós mesmos, acreditemos ou não na mensagem que se iniciou naquela noite de Belém, em torno de uma manjedoura, com um burro e uma vaca no lugar de todos nós. Eles sabiam o que faziam.

Sempre impliquei com Papai Noel. Gosto de dar e de receber presentes, mas vejo no Bom Velhinho uma edição mercadológica do rei Momo, de quem também não gosto, mas considero mais necessário e autêntico.

quarta-feira, dezembro 15, 2010

Uma morte anunciada


A derrota do Inter era uma morte anunciada e não é a primeira vez que uso desse tom prepotente para dizer isso aqui. Da primeira vez foi quando com um ano de antecedência disse aqui que a Espanha seria a campeã mundial em 2010. Logo que a fúria perdeu a semifinal da copa das confederações de 2009 para os EUA, afirmei e dei as razões pelas quais o título da copa viria.
Sobre o internacional perder para o Mazembe eu não esperava, mas tinha a convicção de que o bi mundial não aconteceria. Coloquei meus argumentos no twitter no dia primeiro de novembro, afirmei que com uma estrutura tática dependente de um ataque debilitado que não conseguiria em um momento de pressão fazer a diferença necessária para uma vitória desse nível.

O inter não jogava bem ou equilibradamente desde os jogos finais da libertadores, e seguiu poupando jogadores em um brasileirão que poderia ter disputado o título. Isso custou caro, assim como pesou a teimosia da comissão técnica e da direção em manter Alecsandro como titular quando a prática estava provando que alternativas mais qualificadas existiam. Essas alternativas eram tanto ter Sóbis como centroavante como foi na final da libertadores, dando assim lugar ao Giuliano que não seria reserva em nenhum time no Brasil. Ainda tinha a opção do Leandro Damião que vinha em uma crescente em relação ao titular. Falei e repito com grande convicção que se Alecsandro não tivesse se machucado na final da libertadores no México não viraríamos aquela partida e se o mesmo tivesse jogado a final no Beira-rio NÃO teríamos conquistado o título.

A blindagem desse jogador foi maior que o desejo pelo título mundial, o futebol é essencialmente coletivo e depende de uma complexa dinâmica que começa no goleiro e culmina no líder do ataque, no centroavante. Esse não tem como único papel fazer os gols, ainda mais os fáceis, esses Alecsandro faz. O centroavante em uma estrutura tática precisa marcar sem a bola, cumprir função de sombra para dificultar a saída de bola do adversário, deve fazer o papel fundamental de pivô, isto é, matar a bola, controlá-la e protegê-la para que os companheiros do meio cheguem e para que os zagueiros respirem. O centroavante de um grande time como o inter deve ter a capacidade de construir e executar uma tabela simples e por fim deve ter recurso técnico para participar de jogadas curtas e principalmente finalizar.

Damião não tem todos esses recursos, mas tem mais que o seu titular, eu preferia a formação com Giuliano, mas é importante frisar que a presença indiscutível de Alecsandro é tão nociva que impediu a vinda de um atacante do calibre que o colorado merece. Com isso não estou individualizando a culpa pela derrota em um jogador, o técnico o escala, os dirigentes os sustentam, e Alecsandro representa em toda a dinâmica exigida em jogos de grande porte um ponto de desequilíbrio negativo.

Um time que perdia para o Avaí em casa, que não ganhava do Vitória e jogava mal no semestre não seria por um passe de mágica que em uma partida decisiva, como é um jogo de mundial, iria ir bem. Foi uma morte anunciada sim, falamos disso, avisamos e é assim mesmo que é para ser lido, não foi por falta de aviso. Alimentou-se uma ilusão gigante de que Gabirus outros poderiam surgir, isso é exceção, ocorre uma vez na vida e outra na morte. Para vencer há de se estudar e planejar como o inter fez, mas há de se ter recurso para executar o planejado, os melhores devem jogar. A insegurança do time no jogo contra o Mazembe é real reflexo de que os jogadores inteligentes (Guinazu, Bolívar, Kléber e Dalessandro) no fundo sabiam que o time não tem centroavante, tem um goleiro fraco, e jogadores, apesar de bons, longe de suas melhores formas como Tinga e Sóbis.

Não há razões únicas, nem explicações que dêem conta de todas essas razões, o que se tinha era uma ilusão que denunciamos cotidianamente, meus amigos concordam comigo, milhares de pessoas pensam dessa forma, mas os que fazem o futebol do inter, por serem muito sortudos e os contextos últimos terem privilegiado nosso time, preferiram investir no quase impossível ou no muito improvável. Futebol é regularidade, organização, estudo, preparação e principalmente qualidade técnica para que todo o resto de concretize.

domingo, dezembro 12, 2010

"Guerra às drogas encarcera mais negros do que apartheid"

Para jurista, guerra se dirige aos mais vulneráveis socialmente

10/12/2010

Renato Godoy de Toledo

da Redação do Brasil de Fato

A juíza aposentada do Rio de Janeiro, Maria Lucia Karam, afirma que a criminalização do usuário que ainda persiste no Brasil viola declarações internacionais e e a própria Constituição brasileira. Karam faz parte da Apilcação da Lei contra a Proibição (Leap, na sigla em inglês). Segundo a juíza, a guerra às drogas nos EUA - que serve de referência para outros países - já propicia um quadro de encarceramento da população negra que ultrapassa os indíces do regime do apartheid na África do Sul.

Judicialmente, o usuário de drogas ainda é tratado como criminoso? Na sua opinião, quais mudanças na legislação poderiam tornar o relacionamento do judiciário com o usuário mais humano?

Maria Lucia Karam: Sim, o usuário de drogas ilícitas ainda é tratado como criminoso no Brasil. A Lei 11.343/2006 – a vigente lei brasileira em matéria de drogas – ilegitimamente criminaliza a posse para uso pessoal das drogas tornadas ilícitas em seu artigo 28, ali prevendo penas de advertência, prestação de serviços à comunidade, comparecimento a programa ou curso educativo e, em caso de descumprimento, admoestação e multa. A Lei 11.343/2006 apenas afastou a previsão de pena privativa de liberdade.

Não se trata de tornar o relacionamento do Poder Judiciário com o usuário mais humano. Na realidade, o mero fato de usar drogas ilícitas não deveria levar ninguém a se relacionar com o Poder Judiciário. A criminalização da posse para uso pessoal das drogas tornadas ilícitas viola princípios garantidores de direitos fundamentais inscritos nas declarações internacionais de direitos e nas constituições democráticas, aí naturalmente incluída a Constituição Federal brasileira. A simples posse para uso pessoal das drogas tornadas ilícitas, ou seu consumo em circunstâncias que não envolvam um perigo concreto, direto e imediato para terceiros são condutas que dizem respeito unicamente ao indivíduo que as realiza, à sua liberdade, às suas opções pessoais. Condutas dessa natureza não podem sofrer nenhuma intervenção do Estado, não podem sofrer nenhuma sanção. Em uma democracia, a liberdade do indivíduo só pode sofrer restrições quando sua conduta atinja direta e concretamente direitos de terceiros.

A guerra às drogas tem um cunho social? Isto é, ela atinge majoritariamente os mais pobres? Se sim, a sra. considera que essa é uma estratégia pensada propositadamente para atingir os mais pobres?

A “guerra às drogas” não se dirige propriamente contra as drogas. Como qualquer outra guerra, dirige-se sim contra pessoas – nesse caso, os produtores, comerciantes e consumidores das drogas tornadas ilícitas. Como acontece com qualquer intervenção do sistema penal, os mais atingidos pela repressão são – e sempre serão – os mais vulneráveis econômica e socialmente, os desprovidos de riquezas, os desprovidos de poder.

No Brasil, os mais atingidos são os muitos meninos, que, sem oportunidades e sem perspectivas de uma vida melhor, são identificados como “traficantes”, morrendo e matando, envolvidos pela violência causada pela ilegalidade imposta ao mercado onde trabalham. Enfrentam a polícia nos confrontos regulares ou irregulares; enfrentam os delatores; enfrentam os concorrentes de seu negócio. Devem se mostrar corajosos; precisam assegurar seus lucros efêmeros, seus pequenos poderes, suas vidas. Não vivem muito e, logo, são substituídos por outros meninos igualmente sem esperanças. Os que sobrevivem, superlotam as prisões brasileiras.

Nos EUA, pesquisas apontam que, embora somente 13,5% de todos os usuários e “traficantes” de drogas naquele país sejam negros, 37% dos capturados por violação a leis de drogas são negros; 60% em prisões estaduais por crimes relacionados a drogas são negros; 81% dos acusados por violações a leis federais relativas a drogas são negros. Os EUA encarceram 1.009 pessoas por cem mil habitantes adultos. Se considerados os homens brancos, são 948 por cem mil habitantes adultos. Se considerados os homens negros, são 6.667 por cem mil habitantes. Sob o regime mais racista da história moderna, em 1993 – sob o apartheid na África do Sul – a proporção era de 851 negros encarcerados por cem mil habitantes. Como ressalta Jack A. Cole, diretor da Law Enforcement Against Prohibition-LEAP – organização internacional que reúne policiais, juízes, promotores, agentes penitenciários e da qual orgulhosamente faço parte – é o racismo que conduz a “guerra às drogas” nos EUA.

Na Europa, a mesma desproporção se manifesta em relação aos imigrantes vindos de países pobres.

A função da “guerra às drogas” – ou do sistema penal em geral – de criminalização dos mais vulneráveis e de conseqüente conservação e reprodução de estruturas de dominação não é exatamente uma estratégia pensada propositadamente pelo político A ou B; é sim algo inerente ao exercício do sempre violento, danoso e doloroso poder punitivo.

As experiências de legalização/descriminalização das drogas têm ajudado a diminuir a violência em função do tráfico?

As experiências menos repressivas na atualidade limitam-se à descriminalização da posse para uso pessoal das drogas tornadas ilícitas. A descriminalização da posse para uso pessoal das drogas ilícitas é um imperativo derivado da necessária observância dos princípios garantidores dos direitos fundamentais inscritos nas declarações internacionais de direitos e nas constituições democráticas. A posse de drogas para uso pessoal, como antes mencionado, é uma conduta que não atinge concretamente nenhum direito de terceiros e, portanto, não pode ser objeto de qualquer intervenção do Estado.

Mas essa imperativa descriminalização não é suficiente. Não haverá nenhuma mudança significativa, especialmente no que concerne à violência, a não ser que a produção, o comércio e o consumo de todas as drogas possam se desenvolver em um ambiente de legalidade. Para afastar os riscos e os danos da proibição, para pôr fim à violência resultante da ilegalidade, é preciso legalizar a produção, o comércio e o consumo de todas as drogas.

A legalização da produção e do comércio de todas as drogas afastará a violência que hoje acompanha tais atividades, pois essa violência só se faz presente porque o mercado é ilegal. ão são as drogas que causam violência. A produção e o comércio de drogas não são atividades violentas em si mesmas. É a ilegalidade que cria a violência. A produção e o comércio de drogas só se fazem acompanhar de armas e de violência quando se desenvolvem em um mercado ilegal. A violência não provem apenas dos enfrentamentos com as forças policiais, da impossibilidade de resolução legal dos conflitos, ou do estímulo à circulação de armas. Além disso, há a diferenciação, o estigma, a demonização, a hostilidade, a exclusão, derivados da própria ideia de crime, a sempre gerar violência, seja da parte de agentes policiais, seja da parte daqueles a quem é atribuído o papel do “criminoso” – ou pior, do “inimigo”.

A produção e o comércio de álcool ou de tabaco se desenvolvem sem violência – disputas de mercado, cobranças de dívidas, tudo se faz sem violência. Por que é diferente na produção e no comércio de maconha ou cocaína? A óbvia diferença está na proibição, na irracional política antidrogas, na insana e sanguinária “guerra às drogas”.

Aliás, o exemplo de legalização que podemos invocar é o que ocorreu nos EUA na década de 1930, com o fim da proibição do álcool. O proibicionismo produziu e inseriu no mercado produtor e distribuidor do álcool empresas criminalizadas; fortaleceu a máfia de Al Capone e seus companheiros; provocou a violência que caracterizou especialmente a cidade de Chicago daquele tempo. Com o fim da chamada Lei Seca (o Volstead Act), o mercado do álcool se normalizou e aquela violência que o cercava simplesmente desapareceu.

segunda-feira, dezembro 06, 2010

O protocolo


Dificilmente as pessoas não encenam, seja qual for a situação. Às vezes a encenação é de algo muito distante do que o sujeito verdadeiramente é, outras vezes a encenação é tênue e só é encenar para se adequar a um padrão de comportamento. Em reuniões acadêmicas, partidárias, coorporativas frases como “meu grande amigo”, “querido companheiro” são comuns, mas isso não significa que nelas resida a intenção fortemente fraterna que seus significados têm. Essas frases se transforam em significantes, assim como um conjunto de coisas, posturas, modos de tratamento e gestos, tudo pertence a um código que ninguém conhece, mas todos cumprem.
Esse código de bons costumes, de tratos educados ou de civilidade chega a sua plenitude quando a ironia entra no assunto, porque ao brincar com algo ou alguém se instaura um tom de quebra de protocolo. Esse momento no fundo, não só faz parte do ritual como é o momento máximo do código se materializando. Assim são as pessoas em ambientes coletivos em nosso tempo, esse código é histórico e geográfico, portanto, no Egito antigo ou em Mali provavelmente foram e são outros os procedimentos.
Nosso aluno de letras começou a pensar um pouco nessa questão do formato das cerimônias coletivas quando passou a frequentar entregas de homenagens na universidade e ir à algumas solenidades de posse em diversas instituições. Alfredo foi percebendo que havia um padrão não só no protocolo do ponto de vista linear, na letra fria do planejamento, mas também nas posturas, nos movimentos e nos rompantes das pessoas.
Seu professor mais velho ao se despedir dos alunos, pois iria se aposentar, fez menção à nova professora que regulava de idade com ele, mas acabara de passar no concurso e estava ingressando na carreira docente, felicitando sua chegada afirmou que era bom ser ela a substituta já que não haveria muita renovação na metodologia, haja vista, sua idade. Aquilo causou um murmuro na sala, o professor tentou ser engraçado e não foi, acabou sendo indelicado.
Naquele momento de constrangimento comum ou vergonha alheia, como queiram, Alfredo confirmou duas coisas: a primeira é que o uso da ironia realmente é o ponto auto do código de relacionamento das ocasiões coletivas e segundo que nem sempre a utilização desse recurso tem efeitos positivos. Ao sair da sala Alfredo se perguntava se todo aquele raciocínio que construíra sobre os meandros dos encontros, sobre a hibridez dos comportamentos não seria uma banalidade que lhe ocupara um tempo precioso. O narrador quer lhe segredar que não, Alfredo, não se trata de banalidades, esses pensamentos podem ser sementes de boas anedotas e de fecundos nexos.

sábado, dezembro 04, 2010

TRAFICANTES E MAFIOSOS

Por Marcos Rolim*

Não é admissível que grupos armados dominem territórios como ocorre há décadas no Rio. Por isso, recuperar para o império da lei comunidades assoladas pelo terror é tarefa civilizatória. Reside aí a importância da ofensiva desencadeada na Vila Cruzeiro e no Complexo do Alemão. Penso, entretanto, que é preciso afastar o delírio triunfalista que anestesia o País desde que a ocupação de favelas com uso de blindados foi comparada ao desembarque dos aliados na Normandia.
Carlos Resa Nestares, da Universidade Complutense de Madrid, diferencia dois tipos de estruturas criminais: aquelas que vendem drogas e aquelas que produzem inteligência e proteção para qualquer comércio ilícito, inclusive com drogas. As primeiras formam grupos de traficantes, as outras formam máfias. No Rio de Janeiro, as facções do tráfico são o “Comando Vermelho”, o “Terceiro Comando”, o “Terceiro Comando Puro” e a “Amigos dos Amigos”. As máfias são as “milícias”, formadas por bandidos que trabalham nas polícias. As milícias já controlam áreas maiores que as facções. Ali, monopolizam a oferta de serviços ilegais, da venda de terras públicas e gás, ao transporte clandestino e à instalação de TV a cabo (a famosa “Netcat”). Quando conveniente, os milicianos alugam regiões para o tráfico (com a mesma naturalidade, alugam “caveirões” para as facções); quando não, deslocam os traficantes, assumindo a venda de drogas diretamente. As milícias – que já elegem candidatos ao parlamento - são, de longe, o mais grave problema de segurança pública no Rio.

Por isso, a polarização pressuposta nas coberturas jornalísticas entre “polícia” e “traficantes” não existe no RJ. Traficantes mantém bases territoriais e pontos fixos de venda porque compram proteção dos segmentos criminosos das polícias. Tudo funciona como em uma S/A de capital fechado. Boa parte das armas do tráfico é fornecida por policiais que, assim, colocam em risco a vida de todos, sobretudo a vida dos policiais honestos, aqueles que – apesar dos baixos salários- honram sua missão e nos protegem. Estes estão fora da “sociedade” e, por isso, correm riscos extras em suas corporações.

Os atentados com queima de ônibus e carros não foram uma “reação às UPPs” como o governo afirmou. Versão que - como de costume quando o tema é segurança - foi assumida sem perguntas pela mídia. Em breve saberemos os verdadeiros motivos e, então, haverá perplexidade. Mas o mais importante é compreender –como o demonstra a experiência mundial – que, em uma democracia, não é possível derrotar o tráfico de drogas com a “guerra”. Devemos impedir a existência da modalidade (já em declínio) do tráfico com domínio territorial e grupos armados. Mas quando alcançarmos isto o tráfico terá encontrado formas mais ágeis e baratas para abastecer o mercado. Para derrotá-lo será necessária uma política pública de redução de danos que permita segmentar o mercado com experiências progressivas de legalização das drogas. A opinião pública no Brasil, entretanto, por desinformação e preconceito, não está disposta sequer a fazer este debate. Os traficantes e seus sócios, é claro, agradecem.

*Jornalista

sexta-feira, dezembro 03, 2010

Paulo Sérgio Pinheiro: Me engana, que eu gosto

Por Paulo Sérgio Pinheiro*, no Valor Econômico, via Vermelho

O dia em que o Brasil começou a vencer o crime ou me engana que eu gosto

A população carioca acuada pelos ataques do terror de criminosos pode até acreditar, mas a batalha no Complexo do Alemão no Rio não vai vencer crime organizado algum. Os criminosos que perpetraram esses ataques de terror contra a população do Rio não são os que comandam o crime organizado.

Nada contra o Estado ter de controlar seu território no Rio. Espanta que nunca o tenham feito de forma efetiva antes. Nem as populações encarapitadas, em condições sub-humanas nos morros, nem os criminosos caíram do céu. O Estado faz tempo abdicou voluntariamente de sua presença nesses territórios, o que permitiu aos traficantes ali presentes extorquir taxas e impor aos residentes regras de comportamento que fossem convenientes às suas atividades criminosas como shopping de drogas das elites e classe média branca cariocas, sob a tolerância benfazeja da polícia.

Nestas últimas décadas, a única face consequente do Estado que essas populações tiveram historicamente assegurada foi a da violência policial ilegal. A matança de “bandidos” pela Polícia Militar no Rio tem sido tolerada e até mesmo encorajada por altos funcionários do governo. Faz dez anos que a Polícia Militar do Rio de Janeiro é a que mais perpetra execuções sumárias no mundo, maquiadas pelos chamados “laudos de resistência”: em 2009 foram 1.048 mortes de adolescentes, jovens, pobres, afrodescendentes nas proximidades das mesmas comunidades populares nos morros.

Mesmo as “Unidades de Polícia Pacificadora” (UPPs), que visam retomar o controle do território do Estado, presentes em apenas 13 das mil favelas do Rio, limitam-se a uma mera presença policial, iniciativa correta, mas insuficiente. Pois o Estado, para efetivamente conquistar o seu território, precisa implantar políticas públicas de educação, saúde, trabalho, apoio às famílias vivendo à mercê do terror do crime. Os adolescentes nas comunidades populares estão imensamente expostos à atração pelas rendosas atividades criminosas em consequência da ausência de políticas preventivas, por exemplo, de inserção no primeiro emprego.

As UPPs estão até agora restritas às comunidades populares situadas no roteiro apropriado para as reformas e os investimentos privados urbanos com vista ao mundial de futebol de 2014, na Zona Sul maravilha, no entorno do estádio do Maracanã, na antiga zona do porto e em Jacarepaguá. Não há nenhuma dúvida que as UPPs, onde foram implantadas, prejudicaram as quadrilhas do tráfico e contribuíram para diminuir os conflitos violentos nas suas áreas: mas não terminaram com o tráfico de drogas nem afetaram as “milícias” (quase 200 na totalidade das favelas, versão do século XXI dos velhos esquadrões da morte), compostas basicamente de policiais militares e civis. Alardear que os ataques criminosos contra a população do Rio são uma prova do sucesso das UPPs seria o mesmo que dizer que os engarrafamentos de trânsito nas metrópoles brasileiras são resultado da bem-sucedida política automotriz no Brasil.

Além dessas execuções sumárias, as operações bélicas contra as favelas, à guisa de política de segurança pública, foram desde 2008 ate à ultima no Complexo do Alemão, agora em novembro, 11 operações que resultaram em cerca de 110 mortes de alegados “traficantes”, 3 policiais mortos e 6 feridos. Dessa vez aparentemente foram 123 prisões, 37 mortos, que provavelmente jamais saberemos quem foram, e quatro policiais feridos.

Obviamente essa escalada de violência não basta. O Estado tem de estar presente de forma permanente e continuada nas comunidades populares por meio de políticas sociais e de prevenção, para as quais o imediatismo eleitoreiro não assegura investimentos necessários no orçamento do Estado do Rio. O combate eficaz ao crime organizado e a seus chefes (cujos nomes, aliás, nunca aparecem e têm impunidade assegurada), que geram bilhões de dólares, se faz, em vez de violência midiática para a galera, com infiltração nas quadrilhas, construção de bases de inteligência sofisticadas sobre o funcionamento e operação do narcotráfico e de outras modalidades do crime organizado.

Cada Estado isolado da Federação não pode dar conta sozinho desse desafio, precisa haver uma colaboração efetiva entre os governos estaduais e o governo federal, que não deve se reduzir a apenas ceder forças militares ainda mais mal preparadas do que a própria Polícia Militar. O policiamento das fronteiras brasileiras é inexistente, calculando-se que 90% dos fuzis nas mãos dos criminosos vêm… do Paraguai. Tarefa admirável para a Marinha brasileira seria assumir o efetivo controle da Baía de Guanabara, entrada do suprimento de drogas e de armas, totalmente livre para a operação das quadrilhas.

Também essencial é a reforma da organização policial herdada da ditadura militar que os senhores legisladores nunca tiveram a coragem de reformar sob o poderoso lobby dos 300 mil policiais militares em todo Brasil, efetivos equivalentes às Forças Armadas brasileiras. Falta perseguição implacável à corrupção policial e em outras esferas das estruturas do Estado. Fundamental é a colaboração entre policiais, Judiciário e Ministério Público para a repressão ao contrabando de armas, à lavagem de dinheiro e para o combate à impunidade que campeia no Rio, onde 92% dos homicídios não chegam ao exame da Justiça. Falta formação de unidades especializadas de juízes, promotores e policiais na luta contra o crime organizado fora dos holofotes da televisão.

Enfim, a vitória contra o crime organizado não está no horizonte no fim desta década.

Nenhuma política de segurança efetiva pode estar fundamentada principalmente numa perspectiva da ocupação policial do território e de megaoperações militarizadas. A centralidade de qualquer política de segurança tem de ir muito além do uso da força muitas vezes excessiva, incompetente e ineficiente. Esses ataques em megaoperações afetam, por um prazo limitado, somente o elo mais fraco e desorganizado do narcotráfico, pela simples razão que o Estado não pode assegurar o controle do território pela ocupação permanente por forças policiais e militares.

Por mais que o “day after” do enfrentamento dos chefetes e pés de chinelo do tráfico nos morros, que a guerra do Rio seja triunfalista, com a mobilização espetacular da PM e do Exército, isso não vai trazer tranquilidade nem segurança à população. Essas cenas são apenas a cortina mais aparente de um jogo de cena numa crise extremamente mais profunda na política de segurança e na repressão ao crime organizado que o governo democrático ainda não conseguiu resolver. Justamente porque o Estado se move numa concepção de guerras contra o crime, todas fadadas ao fracasso.

*Paulo Sérgio Pinheiro é professor-adjunto de relações internacionais na Brown University (EUA). Artigo extraído do jornal Valor