quarta-feira, junho 30, 2010

A copa

A copa na África do Sul é grandiosa em vários sentidos, o evento é lucrativo para os patrocinadores, para os profissionais que se destacam, abre possibilidades para novas personalidades surgirem em âmbito mundial e local. O futebol é apaixonante até quando nivelado por baixo como no caso da primeira fase da competição, a tecnologia nos mostra imagens em várias dimensões, fotos com definições incríveis, enfim. Mas é bom fazer o papel de chato e dizer que há pela África e também no Brasil, muito mais tristezas e problemas do que imaginamos. A mídia que nos mostra a copa nos mostra o cenário montado e não a realidade. Muitos operários que construíram os estádios, ainda não receberam seu pagamento integral (apesar de alguns ganharem ingressos e isso sim ser bem divulgado), a imensa maioria da população africana não tem um banheiro parecido com os que os turistas encontram nos belos estádios e isso é real também no Brasil. Por aqui pessoas estão morrendo de doenças tratáveis e afogadas nas cheias de Alagoas e Pernambuco, nos EUA o maior vazamento de óleo na história do país não vai provocar a perda de lucros da empresa responsável ou punição da mesma. Esse é o mundo que segue, ainda em tempo de copa e de alegria.

sábado, junho 19, 2010

Saramaguiações 2




Não me peçam razões, que não as tenho,
Ou darei quantas queiram: bem sabemos
Que razões são palavras, todas nascem
Da mansa hipocrisia que aprendemos.

Não me peçam razões por que se entenda
A força de maré que me enche o peito,
Este estar mal no mundo e nesta lei:
Não fiz a lei e o mundo não aceito.

Não me peçam razões, ou que as desculpe,
Deste modo de amar e destruir:
Quando a noite é demais é que amanhece
A cor de primavera que há-de vir.

Todos sabemos que cada dia que nasce é o primeiro para uns e será o último para outros e que, para a maioria, é só um dia mais.

Tolerar a existência do outro e permitir que ele seja diferente, ainda é muito pouco.
Quando se tolera, apenas se concede, e essa não é uma relação de igualdade, mas de superioridade de um sobre o outro.

JOSÉ SARAMAGO

Saramaguiações




Reproduzo abaixo pensamentos de José Saramago, raro escritor que conjugava o envolvimento com causas sociais, o compromisso político e ideológico com a arte da literatura original. Na foto acima Stédile, Saramago, Sebastião Salgado e Chico Buarque.

Onde está a esquerda?

“Imaginei, quando há um ano rebentou a burla cancerosa das hipotecas nos Estados Unidos, que a esquerda, onde quer que estivesse, se ainda era viva, iria abrir enfim a boca para dizer o que pensava do caso. Passou-se o que se passou depois, até hoje, e a esquerda, covardemente, continua a não pensar, a não agir, a não arriscar um passo (…)”.
“(…) Já tenho a explicação: a esquerda não pensa, não age, não arrisca um passo. Passou-se o que se passou depois, até hoje, e a esquerda, cobardemente, continua a não pensar, a não agir, a não arriscar um passo. Por isso não se estranhe a insolente pergunta do título: “Onde está a esquerda?”

A não-utopia

“O único lugar que existe é o dia de amanhã, a nossa utopia é fazer alguma transformação já. Não há tempo para gastar em discussões e movimentos de mobilização que resultarão em alguma melhora na qualidade global de vida somente em 2043 ou, pior, daqui a 150 anos. Quem nos garante que no futuro as pessoas estarão interessadas naquilo em que agora estamos? Para as cinco bilhões de pessoas que vivem na miséria, utopia é nada”.

A ilusão do mundo democrático

“O poder econômico sempre existiu, o poder político sempre esteve ligado a ele, sempre existiu um concubinato entre esses dois poderes. Mas os cidadãos estão aqui embaixo. E como eles poderiam expressar suas angústias, dúvidas e necessidades junto a este poder econômico? Em princípio, seria através do mesmo governo que serve de correia de transmissão. Mas não podemos ter qualquer esperança de que esses governos digam ao poder econômico, representado hoje pelo FMI, que as condições que vocês nos impõem são terríveis. Há um problema, que na minha opinião, é fundamental da democracia: ou ela transcende o poder da tal bolha que falei, tendo uma ação fora dela, ou vamos continuar a viver na ilusão do mundo democrático”.



Retorno à filosofia para salvar democracia

“Todos os dias uma comédia vergonhosa que se chama democracia é encenada. Nesta comédia, pode-se debater de tudo, menos a própria democracia. A falsidade central deste modelo reside no fato de que o poder econômico é o mesmo que o poder político. O único antídoto para reverter esse mau funcionamento da democracia é construir uma sociedade crítica que não se limite a aceitar as coisas pelo que elas parecem ser e depois não são, mas se faça perguntas e diga não sempre que for preciso dizer não. Para isso, é urgente voltar à filosofia e à reflexão”

segunda-feira, junho 14, 2010

Montevideo

Quando tu vais a uma cidade e fica com vontade de abrir um bar é porque só fez festa? Também. Mas a ida a Montevideo foi bem turística também, conheci vários lugares históricos, outros nem tão badalados e ainda alguns por ter me perdido mesmo, caminhando. A capital do simpático Uruguai é fria na medida certa, tem plátanos que a embelezam, tem as melhores carnes e cervejas (caras também), tem um espanhol lento na língua da sua população, tem o belo porto e rio da prata sem fim.
Tango e candombe são os ritmos tradicionais, mas a cena do rock é bem promissora, pelo menos a que frequentamos. Passei por uma feira na rua que vendia coisas velhas e aparentemente sem nenhuma utilidade, porém se sabe que artistas plásticos consomem muito desses materiais, assim como colecionadores. Enfim, a história é algo muito vivo nas ruas, nas referências, a biblioteca nacional é bem movimentada, mas por outro lado a coca-cola e o MC estão estampados em todas partes da cidade que fui e não só como propaganda e sim nas cadeiras, nas mesas, nas fachadas. Bem mais que em Porto Alegre por exemplo. Foi muito boa a viagem, vale a pena. Logo, talvez, impressões sobre a cidade de Pelotas.

segunda-feira, junho 07, 2010

Valores e a atual fase da modernidade

OBS: Pessoal estive em Montevideo no feriado, por isso não atualizei o blog. Esse texto abaixo trata do mesmo tema que tentei tratar na poesia do post anterior, só que em outro formato.Quem sabe logo falarei das minhas impressões sobre a capital uruguaia.


Y mis manos son lo único que tengo
Y mis manos son mi amor y mi sustento
Y mis manos son lo único que tengo
Y mis manos son mi amor y mi sustento

Violeta Parra – Lo único que tengo

Parece insólito cantar com Violeta Parra e seus mais doces intérpretes, destacando-se Victor Jara e Mercedes Sosa. Lembrar a grande poetiza popular chilena do século XX, falecida em 1967. Reafirmar que é nas mãos de cada ser humano, onde se concentram, tanto suas possibilidades de amar como a de trabalhar, produzindo algo para além de si mesmo. Tais versos de incrível beleza vão à contramão de um tempo de desvalorização do que é humano e sensível em cada pessoa.

Valorar o trabalho seja ele manual ou intelectual está absolutamente fora de moda. Na atual fase histórica, infelizmente, para muitos o que importa não é mais o que se faz e se sabe fazer ou se pode aprender. A vida social valoriza bem mais a posição alcançada do que a competência, bem como, o dinheiro obtido no lugar a contribuição social. Diplomas e cargos foram colocados no lugar da capacidade profissional.

O amor próprio de hoje é muito mais alimentado por que se consegue amealhar em propriedades (mesmo que sejam dívidas) e em recursos financeiros (mesmo que apenas potenciais). A fama também substitui ou relativiza o orgulho profissional. Ser reconhecido pela imagem e atributos físicos ganhou um espaço antes desconhecido. O protótipo construído da imagem pessoal, mesmo que esconda o que se passa realmente, é o que importa.

Valorar o amor em todas as suas formas e variações - dentre elas, o carinho pelo outro e o respeito mútuo - caiu no vazio da lógica de interesses e de falsidades nas relações interpessoais. O aperto de mão e a tapinha nas costas que herdamos de nossos patrícios portugueses podem não transmitir nada de mais concreto, restando em uma formalidade. O abraço, com o qual terminamos nossos e.mails não é necessariamente algo que realmente desejamos. Não é diferente no que se refere às carícias entre os amantes, amigos, pais e filhos.

No deserto do real, criado pelo desenvolvimento do capitalismo, a velha comunidade desaparece, levando consigo a humanidade de seus membros. A admiração transforma-se em inveja, o comentário banal, em intriga. Instala-se, facilmente, um clima de desconfiança e se faz a apologia do ódio a quem estiver mais próximo. Há um esforço desmedido para neutralizar a velha luta de classes, substituindo-a pelas disputas interpessoais fratricidas e sem nenhum conteúdo apreciável.

Neste contexto, a ignorância campeia com a mais absoluta liberdade. Em vários ambientes, quase ninguém mais ama o trabalho e nem gosta de seus semelhantes, o que interessa é o que se pode lucrar. A lógica do sistema penetra o conjunto do tecido social, corrompendo-o, criando impossibilidades. Os grupos contaminados tornam-se arredios a qualquer solução ou compreensão racional, apenas, seguem o que é transmitido pelas grandes mídias. Estas pilotam consciências prestando inestimáveis serviços aos poucos que já têm poder de sobra.

Obviamente, tal quadro dantesco não se aplica a todos os entes sociais brasileiros e universais. Há poderosos núcleos de resistência que não aceitam as regras do jogo. Estes fazem tudo o que podem para reverte-las, buscando alternativas em seus trabalhos e demais fazeres sociais. Há muita gente que continua amando o trabalho e seus semelhantes. Eles não aceitam, como quem escreve este artigo, que este mundo seja imutável e que não existam saídas. Não se calam e persistem. Na verdade, só existe uma meta: jamais capitular frente ao inimigo.

Por isto tudo é preciso continuar cantando com Parra, Jara, Sosa e seus homólogos de toda parte. Insistir que continuamos a ter nas mãos o poder de decidir a vida que queremos ter. Um sozinho muda alguma coisa, quanto mais formos mais teremos a chance de viver uma sociedade mais justa e fraterna, vencendo a ignorância. Felizmente, ainda conseguimos nos emocionar ao ouvir os versos citados. Eles não param de ecoar em nossos cérebros e de nos levar à busca de novos caminhos.


Luís Carlos Lopes é professor e escritor.