terça-feira, janeiro 28, 2014

Lar luso




Aqui há casas de ladrilho
encantadas, coloridas
habitada por mães e filhos
refletem, brilham

são antigas, mexidas
têm histórias, vidas
memórias, vítimas;
casas de ladrilho
domicílio de destinos

clássica arquitetura portuguesa
típico, como o que vai à mesa
e os santos cortejos;
morada vestida de azulejo.

Gregório Grisa

sábado, janeiro 25, 2014

Friozinho



Nem todo frio é fosco
nem todo vento corta
deixa o cabelo solto
faz onda nas tuas costas..

nem toda neve dura
nem todo gelo aguenta
muito dele vira chuva
outro pouco tormenta

nem toda luva esquenta
nem toda lã basta
chá, talvez de menta
abraço também, não gasta

nem todo país ta inverno
nem todo lugar ta verão
aqui se vive um frio terno
aí quente, como meu coração.


Gregório Grisa

Esclarecimentos sobre a Direita Miami



Por Juremir Machado em seu blog
O mais comum é que cada personagem não tenha consciência da sua personalidade. O Brasil vem sendo dominado, na classe média e na mídia, por um tipo muito especial, o lacerdinha, representante da direita Miami.
É um pessoal que se acha sem ideologia, pois, para o lacerdinha autêntico, ideologia é coisa de esquerdista comedor de criancinha. A direita Miami acredita que todo esquerdista é comunista de carteirinha e que sonha com uma sociedade no modelo da Coreia da Norte.
O ideal da direita Miami é comer hambúrguer na Flórida, visitar a Disney todos os anos, ler a Veja, ver BBB, copiar e colar artigos de colunistas que falam todo dia da ameaça vermelha – e não é o Internacional nem o América do Rio -, esbaldar-se em shoppings sem rolezinhos, salvo de patricinhas e mauricinhos, e denunciar programas governamentais, exceto de isenções de impostos para ricos, como esmolas perigosas e inúteis.
A direita Miami tem uma maneira curiosa de raciocinar.
– Se você é esquerdista, por que vai à Europa?
– Não entendi a relação – balbucia o ingênuo.
– Se você é esquerdista, por que tem plano de saúde?
A direita Miami contabiliza as mortes produzidas pelo comunismo, no que tem razão, mas jamais pensa nas mortes produzidas pelo capitalismo no passado e no presente. Mortes por fome, falta de condições sanitárias e doenças evitáveis não impressionam os lacerdinhas. Não parece possível à direita Miami que se possa recusar o comunismo e o capitalismo brasileiro. A social-democracia escandinava, por exemplo, não chama atenção dos sacoleiros de Miami. É uma turma que quer muito Estado para si e pouco para os outros. De preferência, muito Estado para impedir greves, estimular isenções fiscais para grandes empresas e reprimir movimentos sociais.
O mais curioso na direita Miami é que, embora defenda o Estado mínimo na economia, salvo se for a seu favor, gosta de Estado robusto em questões morais como consumo de drogas e de sexualidade, aquelas que, mesmo criticando, costuma praticar e exigir tratamento diferenciado quando o Estado flagra algum dos dela em conflito com a lei. A direita Miami fala ao celular, dirigindo, sobre a sensação de impunidade no Brasil e, se multada, denuncia imediatamente a indústria da multa.
A direita Miami é contra cotas, Bolsa-Família, ProUni e todos esses programas que chama de assistencialistas e eleitoreiros. Vive de olho no impostômetro e, para não colaborar com a excessiva arrecadação dos governos, faz o que pode para sonegar o que deve ao fisco. Roubar do Estado que gasta mal parece-lhe um dever moral superior.
Um imperativo categórico.
A direita Miami vive denunciando Che Guevara, mas nunca fala de Pinochet. Se dá uma melhorada na economia dos camarotes, pode torturar e matar. As vítimas são esquerdistas mesmo. A direita Miami adora metrô em Paris, quando vai até lá, apesar de achar que tem muito museu chato e pouco shopping bacana, mas é contra estação de metrô no seu bairro. Tem medo que atraia “marginais”. A última moda da direita Miami é o sertanejo universitário. Quanto mais a tecnologia evolui, mas a direita Miami se torna primária. O que lhe falta, resolve com silicone.

sexta-feira, janeiro 24, 2014

Diga




um gole de soluço
engasgo, tusso 
pra falar disso
tremo, suspiro

sempre quis 
homenagear as coisas
que não conseguimos dizer
e aqui fiz

do único jeito que pode ser
tentando dizer
só mais uma vez
tudo aquilo que não se diz


Gregório Grisa

Dá para reverter a desigualdade social mundial?




Um relatório da ONG Oxfam, publicado na segunda-feira, estima que as 85 pessoas mais ricas do planeta ganham o equivalente às 3,5 bilhões mais pobres.

A reportagem é de Marcelo Justo, publicada pela BBC Brasil, 23-01-2014.

No Fórum Econômico Mundial de Davos - que nesta semana congrega políticos, empresários e personalidades com um volume de negócios equivalente a quase a metade do PIB americano -, a desigualdade foi identificada como uma das principais ameaças à economia mundial.
Mas, ainda que todos concordem com a gravidade do problema, haverá esforços para solucioná-lo?

Nos últimos 30 anos, segundo a Oxfam, o 1% mais rico da população passou a abocanhar renda ainda maior, em 24 dos 26 países que forneceram dados sobre o período. O Brasil é citado como um dos poucos países onde a desigualdade está diminuindo.

Nos EUA, em 1978, um salário anual médio equivalia a US$ 48 mil (em valores atuais), e 1% da população ganhava US$ 390 mil. Em 2010, o salário médio caiu para US$ 33 mil, enquanto 1% da população ganhava mais de US$ 1 milhão.

O período coincide com a hegemonia da crença neoliberal promovida entre os anos 70 e 80 por políticos como Augusto Pinochet, no Chile, Ronald Reagan, nos EUA, Margaret Thatcher, no Reino Unido.

A ideologia, que emergiu triunfante com a queda do Muro de Berlim, prega regulação mínima do Estado sobre a atividade econômica, liberdade absoluta ao mercado e redução dos impostos aos mais ricos, a fim de promover o crescimento econômico.

A Oxfam defende iniciativas que vão na direção oposta: "É preciso um combate global à evasão a paraísos fiscais. Um sistema de impostos progressivo. Um salário digno", disse à BBC Mundo Ricardo Fuentes-Nieva, chefe de pesquisas do órgão.

Estados costumam ser as únicas entidades capazes de intervir significativamente na redução da desigualdade em nível nacional, mas, para tal, necessita de dinheiro para financiar investimentos em saúde, emprego, educação ou previdência social.

Distorções

Nas últimas décadas, a elite mundial contribuiu decisivamente para o "desfinanciamento" estatal: segundo o Tax Policy Center, dos EUA, desde a década de 1970, a carga de impostos caiu para os mais ricos em 29 dos 30 países nos quais há dados disponíveis.

No mesmo período, o número de paraísos fiscais alcançou 50 a 60 jurisdições, que, segundo cálculo da revista The Economist, são o destino do equivalente a quase o dobro do PIB dos EUA.

O diretor da ONG Tax Justice Internacional, John Christensen, ilustra o impacto dos paraísos fiscais.

"No âmbito de indivíduos, a perda em receita fiscal é de cerca de US$ 225 bilhões. Em âmbito corporativo, ocorre uma distorção de preços. (Multinacionais) pagam pouco ou nada (para manter o dinheiro) no paraíso fiscal e, no país de origem, pagam menos do que deveriam porque seus ganhos ficam muito abaixo da realidade", afirmou à BBC Mundo.

Isso provoca distorções tragicômicas. Um único edifício nas ilhas Cayman, chamado de Ugland House, é a sede oficial de 18 mil empresas.

Nos Estados Unidos, Delaware, cuja população não chega a 1 milhão de pessoas, existem 945 mil empresas, mas de uma por cabeça.

E o Google faturou US$ 5 bilhões no Reino Unido em 2012, mas praticamente não pagou impostos por isso.

Políticas

A globalização financeira, a desregulação e a capacidade de mover a produção de um país a outro converteram esse poder econômico em uma força capaz de dobrar governos.

"A elite mundial está impondo políticas de Estado que lhes favoreçam", opinou Ricardo Fuentes-Nieva. "Isso produz uma 'deslegitimação' da democracia e do Estado."

O relatório da Oxfam diz que, em pesquisas conduzidas em seis países - Brasil, Espanha, Índia, África do Sul, Reino Unido e EUA -, a maioria dos entrevistados opinou que as leis tendem a favorecer os mais ricos.

A ONG fez um chamado por mais responsabilidade à elite global - chamado que, segundo Fontes-Nieva, pode ter mais apelo por conta da profundidade e da extensão de potenciais turbulências globais.

"Estamos ante um perigo de ruptura do contrato social. Desta vez, o conjunto da sociedade, inclusive a classe média, se vê afetada. Precisamos lembrar que tratam-se de políticas públicas que podem ser mudadas. Se não forem, o impacto prejudicará as próprias elites, porque a crescente exclusão de consumidores pode acabar produzindo uma sociedade economicamente doente."

Sinais de debilidade não faltam: segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), o desemprego mundial será de 6,1% neste ano, em comparação com 5,5% em 2008. Entre os jovens, a taxa será de 13,1%.

A íntegra do relatório, em espanhol, pode ser lida aqui
 
Fonte da reportagem: IHU

quinta-feira, janeiro 16, 2014

Rolezinho. Ostentar é contestar.

Por Cleber Lambert, doutor em filosofia pela UFSCar e Université Toulouse II-Le Mirail

Para o filósofo, reduzir os rolezinhos a um apelo por pertencimento social desqualifica a sua consistência própria, que está em fender a ordem da percepção, da sensibilidade, para manifestar inequivocamente um dissenso. A ostentação, nesse sentido, embaralha as cartas e propicia possibilidades antes inexistentes — é devir-revolucionário, agência intrusiva contra o invisível que a desigualdade sustenta.



Nos rolezinhos não há, como bem notou a antropóloga Rosana Pinheiro Machado, nenhum ato de resistência e, no entanto, eles são umacontecimento. Nos rolezinhos não há nenhum sujeito político e, no entanto, eles instauram umasubjetividade política
Essas duas sentenças articulam-se, pois um ato de resistência remete a um sujeito político que delibera, enquanto um acontecimento consiste na ruptura de uma ordem, de uma certa “partilha do sensível”, instituindo um processo de subjetivação inovador. 
O acontecimento é a necessária contingência dessa fissura e, por isso mesmo, tanto mais político. Como aponta J. Rancière, uma partilha da experiência sensível dada, ou seja, aquilo que habitualmente percebemos, supõe lugares determinados, sujeitos que os ocupam e funções que lhe são atribuíveis. 
Ela é atualizada por uma percepção persistente, a cuja repetição chamamos de reconhecimento. Não se trata de uma “disciplinarização” forçada dos corpos, mas de uma “regra do seu aparecer”, pois eles só são percebidos, ou não, sua voz é discurso ou ruído, dentro de uma configuração dos espaços, ocupações e funções. 
Também o sujeito político pode ser um lugar tranquilo numa certa partilha do sensível, numa certa ordem do visível e do dizível. Certos acadêmicos de “ex-querda” muitas vezes são seus zelosos guardiões, vendo o sujeito político em seu lugar com tanta naturalidade quanto os seguranças do shopping veem os pobres da periferia chegando para assumirem os postos de trabalho nas lojas, no almoxarifado, na própria segurança. 
Ainda como mostrou Rancière, na esteira de M. Foucault, essa ordem nada tem de política, mas é, antes, policial (a polícia que reprime na rua nada mais é que o estrato mais baixo dessa ordem que dispõe a comunidade segundo a distribuição sedentária do poder no sentido de potestas). “É a fraqueza e não a força dessa ordem que incha em certos estados a baixa polícia, até encarregá-la do conjunto das funções de polícia” (Cf. J. Rancière, O desentendimento, Ed. 34, p. 41). 
Dessa maneira, os intelectuais de “ex-querda” designam bem o que A. Pilatti e G. Cocco chamaram de Unidade de Polícia do Pensamento. No pensamento é na rua, a baixa polícia busca pelo consenso.
Os rolezinhos, a exemplo de outros acontecimentos, como índios e negros ocupando a universidade através de cotas, batalhadores arrombando a cidade cercada do consumo a fim de também consumir gloriosamente, empregadas domésticas reconhecidas como trabalhadoras e não mais como aquela “quase da família” sem direito, contudo, à herança, eles consistem em “bagunçadores” da percepção longamente e violentamente curtida em séculos de colonialismo, escravidão e desigualdade, no Brasil. 
E, precisamente enquanto tal, esses acontecimentos instauram uma outra consistência, fazem consistir uma outra partilha, reconfiguram todo o sensível. O invisível passa a ser visto, e o ruído indistinto se torna amplo discurso convocatório, mas porque houve um deslocamento de lugar, e as propriedades que habitualmente eram conferidas ao sujeito que o ocupava já não podem lhes ser imputadas. 
Esse acontecimento violenta a ordem perceptiva policial, tanto no que se refere à suposta espontaneidade das relações sociais quanto no que diz respeito à suposta rigidez das funções de Estado (pois uma e outra mantém relações múltiplas na ordem policial em suas dimensões, por assim dizer, molares moleculares). Por isso, é preciso dizer desse acontecimento que ele instaura uma subjetividade política, na medida em que esta se refere à fissura que rompe com o consenso e sua ordem sensível das distinções.
Mas onde se dá exatamente essa ruptura? No caso da sociedade e do Estado brasileiros, ela se dá no plano que é mais autêntico, verdadeiro e concreto para os jovens das periferias. Posto que a partilha do sensível, sua ordem policial, dispõe um espaço que vai do centro à periferia não somente em termos da organização da cidade, porém mais profundamente no plano da percepção, o jovem da periferia ousa romper essa ordem e ostentar-se num lugar onde ele não podia ser percebido. 
As decisões judiciais favoráveis ao impedimento da realização dos rolezinhos e à sua possível repressão apenas atestam a ordem policial e sua intrincada rede de distinções. Mas a ostentação a contesta! E sem retorno à configuração que ela acaba de fissurar. Estamos longe de uma revolução, encabeçada por um sujeito político – o que de resto, jamais existiu. 
Porém, na esteira dos bagunçamentos da percepção, dos últimos anos, no Brasil, e que culminaram nas manifestações de 2013, os rolezinhos dão consistência àquilo que os filósofos Deleuze e Guattari chamaram de devir-revolucionário, ou seja, a atualização sempre renovada da igualdade de qualquer um com qualquer um, que não pode ser senão violenta, posto que faz intrusão na ordem policial que gostaria de ser consensual. 
A contestação não nos parece uma espécie de “apelo desesperado” dos rolezeiros, como sugeriu ainda Rosana P. Machado, para pertencer à ordem global, o que é, no limite, sugerir sua impotência, do ponto de vista extrínseco que é o desse poder. A ostentação, na medida em que contesta a ordem desigual da polícia, instaura o dissenso político e atesta, com isso mesmo, a igualdade. Nesse caso, ostentar tem a ver com poder, mas não nos esqueçamos de uma distinção filosófica, já por demais conhecida, segundo a qual o poder também se diz de potentia e não somente de potestas.

O ano que não vai acabar




O poder público responde aos "rolezinhos" com truculência. Mas, como em junho, a repressão só fará o movimento se propagar. 

Em junho de 2013, a "terra brasilis" tremeu, sem que ninguém o tivesse previsto. Mas, já havia algum tempo, o ranger das placas tectônicas da "política nacional" apontava a emergência do magma jovem e indomável que inundou as ruas e as fez viver. 

Os megaeventos tinham feito das cidades um negócio para as elites de sempre; o Minha Casa, Minha Vida foi usado para remover pobres para as periferias; a "pacificação" apenas reconfigurou o regime de terror das polícias contra os pobres. 

Dezembro findou indicando que o ano iniciado no outono subverteu até o calendário e não terminará com a chegada do verão. Os tremores não cessaram: deixaram fraturas duradouras no solo das metrópoles e na arquitetura da polis. 

A predação das cidades e o falseamento da representação foram estruturalmente postos em questão. As ruas tornaram-se territórios irrenunciáveis de luta, "sherwoods" que escapam à privatização de tudo. 

O cenário para 2014 é, a um só tempo, maravilhoso e inquietante. Renovadas formas de organização, debate, deliberação e ação emergem nas ágoras improvisadas em escadarias e largos onde a multidão toma a palavra com a coragem de dizer a verdade: do calvário de Amarildo até o trem sempre enguiçado; da tragédia das enchentes até o apartheid dos templos de consumo, agora desafiados pelos "rolezinhos". Os pobres ousam saber e sabem ousar. 

O poder responde tornando o apartheid explícito: proibição judicial e truculência policial, e isso logo depois da hipócrita sacralização de Mandela. Mas, como em junho, a repressão só fará o movimento se propagar. Os jovens que circulam pelos shoppings nos dizem que, para sermos livres, precisamos estar e agir juntos na polis. E estar juntos implica que o pressuposto da liberdade seja a igualdade, a igualdade não como aplicação de um critério abstrato de justiça, mas a justiça como constituição da liberdade. 

A escravidão de fato dos negros, das mulheres, dos índios e dos pobres no Brasil persiste porque eles não são iguais e, pois, não são realmente livres. Nas palavras de Hannah Arendt: "A isonomia não significa que todos são iguais perante a lei nem que a lei seja igual para todos, mas sim que todos têm o mesmo direito à atividade política". 

Quantas ironias ouvimos sobre a horizontalidade exacerbada do movimento? Oras, construir essa horizontalidade é condição necessária para dar conteúdo à liberdade: relacionar-se entre iguais na publicidade da ágora. Mais do que isso, pela primeira vez o movimento conseguiu mostrar que o horizonte do aprofundamento democrático implica na conquista do direito à política que os pobres das favelas, subúrbios e periferias não têm. 

Já nos gabinetes, intelectuais blasés "pontificam" na desqualificação dos movimentos, deslembrados ou ignorantes de que pontificar é "fazer pontes", não dinamitá-las; é reduzir distâncias, não produzi-las. 

Atuam como Unidades de Polícia do Pensamento: criminalizam autores e conceitos e, assim, ajudam a "pacificar" o debate, legitimando a repressão. Pois essa foi a principal resposta dos poderes "públicos" à nova brecha democrática: entregar a "mediação" do conflito à truculência policial. 

Não é fácil, porém, repetir "no asfalto" a rotina de terror que o Estado (sob qualquer governo) impõe a favelas e periferias. No Rio, sete meses de manifestações e enfrentamentos de rua mostram que, quando é preciso, a polícia atenua sua histórica brutalidade. 

Foram os "black blocs" que mantiveram a brecha democrática aberta contra a hedionda reiteração da guerra do Estado contra os pobres. A multidão continua nas ruas, redes e shoppings. Mas ainda há tempo para os poderes constituídos, sobretudo o governo federal, reconhecerem a potência da nova etapa democrática. Isso é o melhor que podemos desejar. Feliz ano "novo"! 

ADRIANO PILATTI, 52, é professor de direito constitucional da PUC-Rio (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro)
GIUSEPPE COCCO, 57, doutor em história social pela Universidade de Paris, é professor titular de teoria política da Universidade Federal do Rio de Janeiro

Fonte: Artigo publicado no jornal Folha de SP.

segunda-feira, janeiro 13, 2014

Porta dos fundos e os religiosos




Em meio às polêmicas envolvendo entidades cristãs, religiosos e o grupo de humor “Porta dos Fundos” uma questão importante vem à tona, há de se respeitar as pessoas ou os dogmas? 

Quando se lê notícias de que organizações religiosas pensam em processar humoristas por eles supostamente terem desrespeitado suas crenças, ou que lideranças católicas criticam os esquetes cômicos, temos um bom motivo para pensar em que tempo e sociedade estamos.

A ironia e a comédia são recursos pedagógicos dos mais antigos, foram e são usados para expor determinados costumes, cujas justificativas para continuarem a vigorar, carecem de lógica. É exatamente o que ocorre nesse caso, a religião é um tema fértil para o humor porque se sustenta em crenças de difícil verificação quando contrastadas com a realidade.


Em um mundo cada vez mais dependente da técnica e da ciência, a mitologia que dá corpo as religiões dificilmente passa por um filtro racional mais pormenorizado. Para que tenhamos nossa interpretação respeitada, seja na arte, na ciência ou na política, é necessário argumentos com aprofundamentos reconhecidos, entretanto, na religião não. 

Há um dogma aceito socialmente de que tem de se respeitar a perspectiva religiosa somente por ela ser religiosa. Temos algo errado aqui. As pessoas precisam ser respeitadas, seus valores considerados, o que não quer dizer que eles não possam ser questionados ou objeto de humor. 

Ao se brincar com crenças ou estórias não se está desrespeitando um ou outro indivíduo que nelas crê, mas as colocando em causa como ideologia que perpassa o imaginário coletivo, isto é, está se tratando de representações e não de sujeitos. Brincar com a origem, a cor da pele ou orientação sexual de alguém é atacar dignidades individuais, todavia, esse humor preconceituoso, tão comum, não causa desconforto a religiosos e suas instituições. 



Particularmente na história de Jesus como filho de Deus, que é o esqueleto da história cristã, há metáforas e afirmações que não podem ser levadas em conta como possibilidades reais. As crenças criacionistas e a mitologia de como surge o ser humano, essas se assim encaradas, são um desrespeito à inteligência das pessoas e e em nosso tempo histórico já pode se dizer que são inaceitáveis, no mínimo.

Se temas como esses não podem ser pauta de comédia, quais poderiam? O fato de que a maioria das pessoas ainda seja mais influenciada por representações religiosas do que pelas científicas, não significa que as primeiras sejam verdadeiras e muito menos incontestáveis. Se crer em determinado mito faz bem a algumas pessoas, isso não faz com que o mito se torne realidade.

Nossos dias não são medievais, tempo em que não se “brincava com o sagrado”, hoje esse sagrado se mantêm dogmático, também, porque poucos ousaram brincar com ele. Portador de conteúdo mais elaborado do que o normal, o grupo de humor em questão tem apenas aberto  portas  (algumas, dos fundos) para que se olhe de outra forma para os dogmas religiosos. 


Gregório Grisa

domingo, janeiro 12, 2014

Obsolescência desprogramada



Sabe aquela estória,
aquela hora 
que nem ficou na memória?
ta onde agora?

Sabe aquele encontro,
aquele sopro
que nem vento criou?
voou? 

Sabe aquele medo,
aquele segredo
que ninguém contou?
escoou?

Sabe aquela crença,
aquele certeza
que ninguém duvidou?
mudou. 


Gregório Grisa

Situação nos presídios expõe guerra contra pobreza, diz socióloga



Quem é preso e morto são os pobres, os negros, os favelados. O que existe é uma guerra contra a pobreza. Quem tem poder na sociedade está preocupado com o seu próprio umbigo. Corações e mentes não se mobilizam pela questão penitenciária.

Essa é a questão de fundo da crise exposta no presídio de Pedrinhas, no Maranhão, na análise da socióloga Julita Lemgruber, 67. Coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Candido Mendes, ela foi diretora-geral do sistema penitenciário do Rio de Janeiro entre 1991 e 1994.

Para ela, a superlotação das prisões, combustível para as tragédias, ocorre pelo estrangulamento do sistema: muitos estão presos provisoriamente de forma ilegal e outros tantos não conseguem livramento condicional. "Essa máquina não funciona e é perversa", diz.


Na sua visão, não adianta construir novos presídios sem resolver a "gangrena" sistêmica do sistema prisional. Mais do que intervenção, é preciso que o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) retome os mutirões permanentes nas cadeias, opina.

Folha - Como a sra. avalia a situação no Maranhão?

Julita Lemgruber - O que está por trás de grande parte das tragédias que acontecem no sistema penitenciário é a superlotação, que é combustível certo para tragédias. A situação do Maranhão é limite: presos são tratados com extrema crueldade e desumanidade. Isso naturalmente provoca uma ebulição interna que acaba transbordando para fora dos muros. Não se consegue conter a violência dentro dos muros. Ela acaba transbordando nos incêndios de ônibus e a postos policiais.

E por que há superlotação?

A superlotação é resultado de dois problemas, um na entrada e outro na saída. Um percentual enorme de presos provisórios está preso ilegalmente. No Rio, acabamos de fazer um estudo que será lançado em uma semana chamado "usos e abusos da prisão provisória". A situação do Rio não é diferente do resto do Brasil. Ao contrário, há Estado em que a situação é muito pior. Quase 50% dos presos provisórios no RJ estão presos ilegalmente.

Montamos um banco de dados com milhares de casos que acompanhamos até o final. Metade desses homens e mulheres que estavam presos provisoriamente não recebeu uma pena privativa de liberdade: ou foram absolvidos ou tiveram uma pena diferente de prisão. Eles estavam presos ilegalmente. Provamos isso aqui no Rio de Janeiro nesse estudo feito ao longo do ano de 2012 e que reúne todos os casos de prisões em flagrante. Há uma ilegalidade brutal e isso se repete no Brasil todo. As pessoas são presas e ficam mofando nas delegacias.

A defensoria não tem condições de se dedicar ao caso dos presos provisórios; ela mal consegue acompanhar os julgamentos e depois a execução da pena. Os presos provisórios ficam literalmente abandonados até o momento do julgamento. Isso é um escândalo no Brasil todo.

Por que essa situação não encontra ressonância e se repete?

Isso se repete porque quem é preso no Brasil é preto, pobre, negro, favelado: aquele grupo de pessoas que não tem voz, que são consideradas sem direitos na sociedade. Corações e mentes não se mobilizam pela questão penitenciária. Quando um político diz que a violência está contida nos muros, o que ele está dizendo é: "Não nos preocupemos; se eles se matarem o problema é deles". Nunca a violência esta contida dentro dos muros.

Quando a violência chega a esses níveis insuportáveis, fatalmente transborda dos muros. Vira preocupação quando acontece um grande escândalo, como o dos presos decapitados em Pedrinhas. No dia-a-dia, o que acontece dentro dos muros é completamente ignorado.

Qual é o problema que dificulta a saída de presos e também provoca superlotação?

Um número enorme de presos já tem direito a benefícios legais. Mas eles não são concedidos porque essas pessoas não têm defesa adequada. Em alguns Estados, levantamentos mostram que 50% dos presos teriam direito a livramento condicional. Essa máquina não funciona. É uma máquina perversa, que joga para dentro do sistema com muita facilidade e que tem um funil estreitíssimo do outro lado; não resolve os casos de presos que têm direito a benefícios legais.

Construir novas prisões adianta?

A primeira coisa que se precisa fazer é resolver o estrangulamento do sistema penitenciário, que acontece na entrada e na saída. Para isso, não é preciso fazer novas unidades. Precisa resolver esse problema, ponto. Se não, vamos construir mais e mais unidades, e elas vão estar sempre superlotadas. Porque não se resolveu o problema central que é o estrangulamento da saída e a entrada.

A sra. comandou sistema penitenciário do RJ nos anos 1990. A situação hoje é pior?

A situação penitenciária piorou muito porque aumentou muito o número de presos, que triplicou nos últimos 15 anos no Brasil. E o número de presos condenados por tráfico de drogas triplicou nos últimos cinco anos. Essa questão precisa ser encarada sem hipocrisia. Quem é o preso por tráfico de drogas? Em alguns Estados, até 80% das mulheres presas é por trafico de drogas. Elas são grandes traficantes?

Pesquisas mostram o perfil do preso por tráfico de drogas no Brasil: é o pequeno traficante, que não tem nenhum poder na estrutura do tráfico, que é facilmente substituído quando é preso. Estamos enxugando gelo. Estamos produzindo uma quantidade enorme de presos ligados ao tráfico de drogas, quando se sabe que essa guerra antidrogas é falida no mundo inteiro.

E a legislação?

A legislação hoje diz que o usuário não é mais penalizado com pena de prisão. O uso continua sendo crime no Brasil, mas o usuário não deve receber pena de prisão. Mas, se for usuário negro e morar na favela, mesmo que seja encontrado pela policia com uma pequena quantidade, vai para a cadeia. Se for um usuário branco e, dependendo do local onde mora e da sua situação socioeconômica, pode ser encontrada com uma quantidade muito maior de drogas, e o que acontece? Ele vai subornar a polícia ou vai convencer o policial de que não precisa traficar como meio de vida. A polícia prende o preto, pobre e favelado. Mesmo com pequena quantidade, é traficante.

Por incrível que pareça, é a partir da legislação que despenalizou com pena de prisão o tráfico de drogas, em 2006, que explode o número de presos por tráfico de drogas no Brasil. Explode porque aumenta a pena para o tráfico. Agora tem esse projeto absurdamente enlouquecido do deputado Osmar Terra (PMDB-RS). Se ele passar, a pena mínima para tráfico de drogas vai ser maior do que a pena para homicídio. É uma insensatez.

Os EUA estão mostrando que a guerra das drogas não vai nos levar a lugar nenhum. Os EUA estão começando a legalizar a maconha porque estão se dando conta de que estão enxugando gelo. E ficamos repetindo como um mantra que vamos resolver os nossos problemas através de uma guerra de drogas. Na verdade, é uma guerra à pobreza. É uma guerra contra a pobreza, porque quem é preso e morto nessa guerra são os pobres.

Como a sra. avalia a questão das facções dentro dos presídios?

A consolidação do poder das facções é um fenômeno do início dos anos 2000. Quando se trata pessoas com tanta brutalidade, crueldade e desumanidade, elas vão responder violentamente. É o que aconteceu no Maranhão e em outras partes do Brasil. Mas como ninguém se preocupa com o sistema penitenciário, essas questões nem chegam à grande mídia. O caso de Pedrinhas acabou chegando porque circulou aquela foto dos presos decapitados. Se a aquela foto não tivesse circulado, até hoje estaríamos fingindo que não conhece a realidade do sistema penitenciário no Brasil.

Quando se ameaça levar o Brasil à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, as pessoas ficam um pouco perturbadas. Dizem que vai ficar mal para o Brasil, que é preciso tomar providencias. O que é uma grande hipocrisia. Em São Paulo há unidades femininas onde as mulheres ainda usam miolo de pão como absorvente higiênico. Em um país que é a sexta economia do mundo e que tem uma mulher na presidência que foi presa e torturada, é muito triste perceber que o governo do PT ainda não olhou com a seriedade necessária o sistema penitenciário.

Não adianta dizer que vai construir unidades prisionais. Isso é muito fácil. O buraco é muito mais em baixo, a situação é muito mais grave do que isso. É preciso resolver uma questão que é sistêmica. Não adianta construir novas unidades enquanto não for resolvido o estrangulamento da saída e o problema da entrada. O sistema despeja essa quantidade enorme de pessoas que acabam mofando nas cadeias, que são presas ilegalmente. Enquanto não se resolver as duas pontas do sistema, não vai se resolver o problema.

Qual é a questão de fundo que faz o problema persistir? A sociedade brasileira tem desprezo pelo pobre?

Esse problema persiste há tanto tempo porque a sociedade brasileira é profundamente hierarquizada. Há cidadãos de primeira, segunda, terceira classe e os não cidadãos –aquelas pessoas sem voz e que são consideradas sem direito. Por que a polícia mata tanto no Brasil? Por que ninguém se revolta? Aqui no Rio a polícia já matou mais de mil pessoas por ano. Agora mata 500 por ano, e todo mundo fica feliz porque melhorou. Isso é uma vergonha! É um escândalo que a policia mate tanta gente!

Outro dia saiu notícia de a policia na Islândia tinha matado a primeira pessoa na história. Lá isso causou um constrangimento enorme. No Rio, a polícia mata 500 pessoas por ano e ninguém se constrange. A classe média parece aplaudir, porque seriam bandidos. São execuções extrajudiciais! Há estudos que mostram que as pessoas que morrem supostamente em confronto com a polícia são, na maior parte das vezes, mortas por tiros nas costas, na cabeça.

Fora o caso das balas perdidas. Na semana do Natal, uma menina de seis anos morreu vítima de uma bala dentro de casa numa favela do Rio. A comunidade foi para a rua, queimou ônibus, tão revoltada que ficou. Todo mundo diz que a polícia entrou atirando, como faz rotineiramente. Aquela velha máxima do "atire primeiro e pergunte depois" continua a viger nas áreas pobres.

É uma sociedade em quem tem poder está preocupado com o seu próprio umbigo. As pessoas que vão para as cadeias e que são vítimas da violência policial são pessoas pobres, que não têm nenhum poder. Elas nem sabem que casos como esses são amplamente cobertos por ação de indenização. Tanto os familiares dos presos mortos no Maranhão quanto das pessoas mortas pela polícia são casos que podem levar a uma ação de indenização contra o Estado. Isso não acontece porque as pessoas não têm noção dos seus direitos. Essas crianças que são mortas na favela quando a policia entra atirando... Imagina se elas morassem no asfalto em Ipanema ou no Leblon!

O que o governo deveria fazer agora no Maranhão? Uma intervenção?

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) mapeia com alguma competência os casos dos Estados em que existem problemas sistêmicos no funcionamento do sistema criminal. Mais importante do que uma intervenção em qualquer Estado, é mandar um grupo de juízes e de promotores. O CNJ já fez isso no passado, no período em que Gilmar Mendes era o presidente do STF. Foi feito com competência. Havia um mutirão permanente do CNJ. Mutirões eventuais os presos acabam chamando de "mentirões", porque não resolvem. É preciso ter mutirões, forças-tarefas do CNJ permanentes.

É claro que em momentos trágicos, como esse do Maranhão, é preciso entrar, mostrar autoridade, recolher as armas e impedir que os presos se matem. Porque é responsabilidade do Estado: o homem entra vivo e tem que sair vivo. Afinal de contas, ele não foi condenado a ser morto dentro da cadeia; foi condenado à pena privativa de liberdade.

Fazer uma intervenção federal no Maranhão sem que se cuide de uma gangrena que é o funcionamento do sistema de justiça criminal, não adianta nada. Não vai chegar a lugar nenhum.

É responsabilidade do CNJ montar [os mutirões] como já houve no passado. Infelizmente foram abandonados tanto na ultima gestão como na de Joaquim Barbosa. Foi abandonada essa ação mais agressiva do CNJ nos Estados em que claramente há um problema sistêmico no funcionamento da justiça criminal.

O STF esta insensível a isso?

Absolutamente, porque o CNJ hoje é uma pálida lembrança do que já foi no passado. É muito louvável que tenham denunciado o que está acontecendo no Maranhão. Mas não adianta só denunciar. É preciso se estruturar, como já aconteceu no passado, para tocar nessa ferida e fazer as engrenagens do sistema da justiça criminal funcionar.

O Brasil está excessivamente inspirado no modelo dos EUA na questão prisional?

Claramente estamos excessivamente inspirados no sistema norte-americano, acreditando que prisão resolve tudo. Uma quantidade enorme de pesos hoje poderia ser punida com outras penas diferentes de prisão, inclusive os pequenos traficantes. De que adianta a gente inundar as prisões de pequenos traficantes que automaticamente são substituídos por outros? A lei diz que é crime, e se precisa fazer alguma coisa. Mas certamente não é mandando para cadeia esses pequenos traficantes, meninos pobres de oportunidades, que se estará resolvendo o problema.

Deveríamos estar investindo na capacitação dessa garotada para que ela não encontre no tráfico a única forma de ter acesso aos bens de consumo que a televisão vomita na cara deles diariamente.

Fonte: Folha de SP.

segunda-feira, janeiro 06, 2014

Uma visita à Universidade de Aveiro - Portugal

Departamentos do Campus Central da UA


por Mariana Peruffo*

Estive hoje na Universidade de Aveiro, uma pérola em meio à queridíssima cidade de casas tradicionais de pescadores e belas construções Art Nouveau, entre outros estilos arquitetônicos históricos.

Já na chegada, nota-se da qualidade do plano urbano do Campus pela posição do estacionamento de veículos, no subsolo, deixando toda a superfície para que seja desbravada pelo pedestre.  Nela, há inúmeros espaços para encontros coletivos, desde um grande anfiteatro em uma das extremidades que serve de cobertura para o Departamento de Artes, até os largos gramados ladeados por uma passarela coberta e aberta que tangencia os acessos dos edifícios dos departamentos sem tocá-los.

Gramado e passarela pedonal


Os edifícios dos departamentos, caixas em paralelepípedos de 3 a 4 pavimentos, quase todos construções em tijolos à vista da mesma cor, enganam bem o observador num primeiro momento, demonstrando tamanha semelhança morfológica. Entretanto, ao olhar mais atentamente, as diferenças entre eles aparecem e ficam mais evidentes quando observados em seus interiores.

O Departamento das Geociências (Arq.Eduardo Souto de Moura), todo em placas de concreto pré-moldado, laterais de vidros com brises horizontais destaca-se entre os outros edifícios de tijolos, que não são menos belos por repetirem o material. 

Seu interior pouco elaborado abriga laboratórios, mas a arquitetura ali está nos detalhes: portas pivotantes de vidros leitosos, maçanetas com design e fechaduras diferenciadas é o que demonstra que tudo foi milimetricamente pensado.

Departamento das Geociências (à esquerda)

Porta pivotante Dep.Geociências



Vale à pena uma espiada curiosa nos interiores de cada departamento, todos se revelam únicos e representativos das disciplinas que abrigam, cheios de arquitetura, espaços agradáveis e mobiliários muito bem pensados.




Alguns grandes nomes da arquitetura estão entre os responsáveis pelas edificações da UA: Alcino Soutinho, Eduardo Souto de Moura e Álvaro Siza.

Álvaro Siza é o responsável pela biblioteca. O exterior, um tanto sujo e descuidado pela falta de manutenção, decepciona quando quem visita espera encontrar “obra do Siza”, mas é no interior dela que toda a expressão de sensibilidade arquitetônica se dá. 

Biblioteca da UA


A entrada com o guarda-volumes cheio de guarda-chuvas já prepara para a claridade e sensibilidade das salas de leitura.
Os pavimentos se dão em torno de um centro vazio de pé-direito total banhado de luz pelas aberturas zenitais arredondadas. As estantes de livros estão dispostas entre mesas de estudo em frente às janelas que emolduram a paisagem exterior, a Ria de Aveiro (qualquer semelhança com o Museu Iberê Camargo não é mera coincidência, pelo menos para mim). 





O vão central é circundado não por guarda-corpos comuns e sim, por mesas largas e lineares de leitura, que protegem de qualquer queda eventual e ao mesmo tempo liberam a visão do observador. Móveis, banquetas, estantes de vidro e alunos lotam os lugares vagos e enchem de poesia o local.

O campus resume-se em espaços urbanos democráticos que estimulam os encontros coletivos nos anfiteatros abertos e gramados largos. O pedestre é agente principal nesse lugar que dá um toque contemporâneo ao visitante de Aveiro.

*Arquiteta e Urbanista

sábado, janeiro 04, 2014

Álvaro Garcia Linera: Às esquerdas da Europa e do mundo

Linera: "A esquerda não pode se contentar apenas com o diagnóstico e a denúncia. Precisa construir um novo sentido comum, recuperar a democracia e voltar a reivindicar ideais universais"


O vice-presidente da Bolívia, Álvaro García Linera, foi convidado a participar do IV Congresso do Partido da Esquerda Europeia, realizado de 13 a 15 de dezembro, em Madri. Falando para representantes de 30 organizações da esquerda europeia, Linera apresentou um programa de cinco propostas para superar a situação de debilidade da esquerda hoje na Europa e em outras regiões do mundo. Álvaro Linera é hoje um dos principais pensadores da esquerda mundial, aliando capacidade intelectual com a experiência de governo que vem tendo na Bolívia. Nestes dias onde se fala muito de crise da representação e de crise da política, vale a pena ler as propostas de Linera para a esquerda mundial. As cinco propostas que ele apresentou são as seguintes:

1. Construir um novo sentido comum

A esquerda não pode se contentar apenas com o diagnóstico e a denúncia. O diagnóstico e a denúncia servem para gerar indignação moral e é importante a expansão da indignação moral, mas não gera vontade de poder. A denúncia não é uma vontade de poder. Pode ser a antessala de uma vontade de poder, mas não é a própria. A esquerda europeia e a esquerda mundial, diante desse turbilhão destrutivo, depredador da natureza e do ser humano, impulsionado pelo capitalismo contemporâneo, tem que aparecer com propostas ou com iniciativas. Nós precisamos construir um novo sentido comum. No fundo, a luta política é uma luta pelo sentido comum. Pelo conjunto de juízos e conceitos. Pela forma como, de modo simples, as pessoas ordenam o mundo. Esse é o sentido comum. É a concepção de mundo básica com a qual ordenamos a vida cotidiana. A maneira pela qual valoramos o justo e o injusto, o desejável e o possível, o impossível e o provável. A esquerda mundial tem que lutar por um novo sentido comum, progressista, revolucionário, universalista.

2. Recuperar o conceito de democracia

Em segundo lugar, necessitamos recuperar o conceito de democracia. A esquerda sempre reivindicou a bandeira da democracia. É nossa bandeira. É a bandeira da justiça, da igualdade, da participação. Mas para isso temos que nos livrar da concepção da democracia como um fato meramente institucional. A democracia são instituições? Sim, são instituições. Mas é muito mais do que isso. A democracia é votar a cada quatro ou cinco anos? Sim, mas é muito mais do que isso. É eleger o Parlamento? Sim, mas é muito mais do que isso. É respeitar as regras da alternância? Sim, mas não é só isso. Essa é a maneira liberal, fossilizada, de entender a democracia na qual às vezes ficamos presos. A democracia são valores? São valores, princípios organizativos do entendimento do mundo: a tolerância, a pluralidade, a liberdade de opinião, a liberdade de associação. Está bem, são princípios, são valores, mas não são somente princípios e valores. São instituições, mas não são somente instituições.
A democracia é prática, é ação coletiva. A democracia, no fundo, é a crescente participação na administração dos bens comuns que uma sociedade possui. Há democracia se os cidadãos participam dessa administração. Se temos como um patrimônio comum a água, então democracia é participar na gestão da água. Se temos como patrimônio comum o idioma, a língua, democracia é a gestão comum do idioma. Se temos como patrimônio comum as matas, a terra, o conhecimento, democracia é a gestão comum destes bens. Crescente participação comum na gestão das matas, na gestão da água, na gestão do ar, na gestão dos recursos naturais. Teremos democracia, no sentido vivo, não fossilizado do termo, se a população (e a esquerda trabalhar para isso) participar de uma gestão comum dos recursos comuns, das instituições, do direito e das riquezas.

3. Recuperar a reivindicação dos ideais universais

A esquerda tem que recuperar também a reivindicação do universal, dos ideais universais. Dos comuns. A política como bem comum, a participação como uma participação na gestão dos bens comuns. A recuperação dos bens comuns como direito: direito ao trabalho, direito à aposentadoria, direito à educação gratuita, direito à saúde, a um ar limpo, direito à proteção da mãe terra, direito à proteção da natureza. São direitos. Mas são universais, são bens comuns universais frente aos quais a esquerda tem que propor medidas concretas, objetivas e de mobilização. Na Europa, usaram recursos públicos para socorrer os bancos. Usaram bens comuns para socorrer o privado. O mundo está ao contrário!

4. Reivindicar nova relação entre o ser humano e a natureza

Também precisamos reivindicar, em nossa proposta como esquerda, uma nova relação metabólica entre o ser humano e a natureza. Na Bolívia, por nossa herança indígena, chamamos isso de uma nova relação entre ser humano e natureza. Como o presidente Evo diz, a natureza pode existir sem o ser humano, mas o ser humano não pode existir sem a natureza. Mas não é o caso de cair na lógica da economia verde, que é uma forma hipócrita de ecologismo. Converteram a natureza em outro negócio.
É preciso restituir uma nova relação, que é sempre tensa. Porque a riqueza que vai satisfazer necessidades humanas requer transformar a natureza e ao fazermos isso modificamos sua existência, modificamos a biosfera. Ao modificarmos a biosfera, muitas vezes destruímos a natureza e também o ser humano. O capitalismo não se importa com isso, porque para ele tudo não passa de um negócio. Mas para nós sim, para a esquerda, para a humanidade, para a história da humanidade. Precisamos reivindicar uma nova lógica de relação, não diria harmônica, mas sim metabólica, mutuamente benéfica, entre entorno vital natural e ser humano.
5. Reivindicar a dimensão heroica da política
Por último, não resta dúvida que precisamos reivindicar a dimensão heroica da política. Hegel via a política em sua dimensão heroica. E seguindo a Hegel suponho, Gramsci dizia que as sociedades modernas, a filosofia e um novo horizonte de vida, tem que se converter em fé na sociedade. Isso significa que precisamos reconstruir a esperança, que a esquerda tem ser a estrutura organizativa, flexível, crescentemente unificada, que seja capaz de reabilitar a esperança nas pessoas. Um novo sentido comum, uma nova fé – não no sentido religioso do termo -, mas sim uma nova crença generalizada pela qual as pessoas dediquem heroicamente seu tempo, seu esforço, seu espaço e sua dedicação.
A esquerda tão débil hoje na Europa não pode se dar ao luxo de ficar dividida. Pode haver diferença em 10 ou 20 pontos, mas coincidimos em 100. Esses 100 tem que ser os pontos de acordo, de proximidade, de trabalho. E deixemos os outros 20 para depois. Somos demasiados fracos para nos darmos ao luxo de seguir em brigas doutrinárias e de pequenos feudos, nos distanciando dos demais. É preciso assumir novamente uma lógica gramsciana para unificar, articular e promover ações comuns.
É preciso tomar o poder do Estado, lutar pelo Estado, mas nunca devemos esquecer que o Estado, mais do que uma máquina, é uma relação. Mais do que matéria, é uma ideia. O Estado é fundamentalmente ideia. E um pedaço é matéria. É matéria como relações sociais, como força, como pressões, como orçamentos, acordos, regulamentos, leis. Mas é fundamentalmente ideia como crença de uma ordem comum, de um sentido de comunidade. No fundo, a luta pelo Estado é uma luta por uma nova maneira de nos unificarmos, por um novo universal. Por uma espécie de universalismo que unifique voluntariamente as pessoas.
Isso requer uma vitória prévia no terreno das crenças, uma vitória sobre os nossos adversários na palavra, no sentido comum, ter derrotado previamente as concepções dominantes de direita no discurso, na percepção do mundo, nas percepções morais que temos das coisas. A política é, fundamentalmente, convencimento, articulação, sentido comum, crença, ideia compartilhada, juízo e conceito compartilhado a respeito da ordem do mundo. E aqui a esquerda não pode se contentar somente com a unidade de suas organizações. Ela tem que se expandir para o âmbito dos sindicatos, que são o suporte da classe trabalhadora e sua forma orgânica de unificação. É preciso ficar muito atento também a outras formas inéditas de organização da sociedade, à reconfiguração das classes sociais na Europa e no mundo, às formas diferentes de unificação, formas mais flexíveis, menos orgânicas, talvez mais territoriais, menos por centros de trabalho.

Fonte: Carta Maior