terça-feira, setembro 23, 2014

"Ah! Nega...Dá um tempo..."



Por Ana Maria Gonçalves no caderno Proa, do jornal Zero Hora, sobre "Sexo e as Negas".

Para se entender a polêmica com a série de Miguel Falabella, "Sexo e as Negas", há que se entender o que é racismo. Simplificando, eis as definições de Lawrence Blum, do livro "Não sou racista, mas...":

- Racismo Pessoal - pensamentos, crenças, comportamentos e atitudes individuais.

- Racismo Social/Sociocultural - pensamentos, crenças, comportamentos, atitudes e estereótipos compartilhados por um grupo e expressos através de religião, cultura popular, meios de comunicação etc...

- Racismo Institucional/Estrutural - oriundo de inferiorização, antipatia e/ou descaso perpetrados por instituições (escola, polícia, sistemas de saúde e judicial etc...)

No Brasil temos os três tipos, separados ou em conjunto, não necessariamente de maneira explícita (quase nunca o é) ou através do ódio, como muitos imaginam. Nosso racismo, ao ser comparado ao dos Estados Unidos e da África do Sul, é considerado inexistente ou brando. Ignorantes dos processos históricos que levaram a consequências segregacionistas, muitos creditam isso à boa índole portuguesa, que teria levado à miscigenação e a uma sociedade na qual negros sofrem preconceito apenas por serem pobres. Falemos, pois, de miscigenação.

Somos miscigenados porque colonizadores brancos estupraram escravas negras. É claro que pode ter havido sexo consentido, mas a regra foi o estupro: posse definitiva do corpo adquirido. Moralmente, justificou-se com o mito da negra fogosa, em oposição à branca casta. Há séculos temos lutado contra tal estereótipo que nos traz graves consequências, inclusive a de que servimos apenas para a cama. Somos livres sim, donas de nossos corpos e desejos; e não é porque podemos compartilhá-los com quem quisermos que vamos compartilhá-los com qualquer um. 

Isto pode ser observado, talvez principalmente, nas periferias, onde as mulheres há muito já estão à vontade com suas roupas curtas, justas, seus corpos fora do padrão de beleza ditado pela mídia. Não há necessidade de uma série televisiva que legitime isso, mas de espaços que discutam, a sério, olhares e demandas sobre esses corpos. Aqui, o primeiro capítulo de "Sexo e as negas" falhou, do mesmo modo que falhou ao perder a oportunidade de enfrentar racismo, machismo e também mobilidade física, tema do episódio. De mobilidade social não se falou, colocando as personagens como camareira, cozinheira, recepcionista e desempregada.

Sobre a mobilidade, a grande questão foi conseguir comprar um carro para pegar homens fora da comunidade. Sobre o olhar cobiçoso do homem branco sobre o corpo negro, a cozinheira Soraia não pôde enfrentar seu patrão desde o lugar vulnerável e subalterno no qual Falabella a colocou, porque provavelmente teve medo de ser despedida. O mesmo aconteceu com a camareira Zulma, quando a patroa lhe pediu que guardasse uma joia. Zulma disse que não poderia sair com algo tão valioso, e a patroa respondeu que ninguém pensaria que, em seu corpo, a joia seria verdadeira. Zulma também não reagiu e, inclusive, sentiu-se feliz por poder usá-la por uma noite.

Também não vi protagonismo nas personagens negras. A história da favela da Praia do Pinto, cuja remoção dá origem à comunidade em que vivem, começa a ser contada através da vida de Jesuína, interpretada por Cláudia Jimenez, quando sabemos muito bem do processo de formação das favelas cariocas, por ex-escravos. É também em torno de Jesuína, através de seu programa de rádio e de seu bar, onde as personagens negras se encontram, que gira quase todo o enredo, pautado/narrado pela voz do próprio Falabella. Ou seja: a vida em Cidade Alta acontece em torno de uma mulher branca, e a possibilidade de narrar suas próprias histórias e manifestar seus pensamentos é tirada das quatro atrizes que seriam as principais (como acontece em Sex and the City, inspiração de Falabella), e entregue a um homem que sabemos branco.

Decepciona? Com certeza; mas não surpreende. Aí estão os racismos social e estrutural, perpetuando estereótipos. E disso, negros e negras conscientes dos papeis - reais ou fictícios - que a sociedade lhes reserva, já sabemos quase sem precisar de confirmação, porque tem sido assim desde sempre. Por isto a polêmica antes mesmo da estreia. Aprendemos por experiência também que, sempre que nos manifestamos, há a vontade de nos colocar de volta em nossos devidos lugares de experimento, de meros personagens, de seres desqualificados para o debate. 

Porque negros inteligentes são aqueles que, dando um passo atrás, concordam com e premiam a inteligente máquina colocada e mantida em movimento para perpetuar o racismo, como nos alerta Falabella em sua página de Facebook: "Acabo de ser convidado pela Faculdade Zumbi dos Palmares para o troféu Raça Negra e para debatermos reflexivamente as questões levantadas por Sexo e as Negas. As vozes inteligentes começam a se manifestar!". 

Aliás, o título deste artigo também é dele. Racismo pessoal? Que ele nos responda, quando tiver tempo de pensar nas atitudes e nos termos usados na tentativa de desqualificar e calar mulheres negras que querem ser protagonistas de suas histórias, sem intermediários, sem homens brancos para escrever um roteiro que nos diz quando e sobre o quê falar e calar.

domingo, setembro 21, 2014

Hipocrisias e suas violências



Muitas vezes, quando queremos nos referir a alguém que é fingido ou sacana, dizemos que fulano é um "artista". Se pensarmos na raiz etimológica da palavra hipocrisia, não estamos de todo errados, ela vem do grego hypokrisis, que designava, na antiga Grécia, os atores de teatro, pois durante as apresentações eles fingiam ser outras pessoas. Com o tempo, a partir principalmente da idade média, hipócrita passou a indicar qualquer pessoa falsa ou fingida, e foi com esse sentido que entrou em nossa língua.

Retomo sua etimologia porque quero falar de duas hipocrisias diferentes, relativas a suas violências correspondentes. 

A primeira hipocrisia é a que muitas pessoas (uns ingênuos e outros conscientes) demonstram diante de fenômenos como o racismo e a homofobia, violências que atentam contra a dignidade das pessoas. Registros de racismo e homofobia parecem estar crescendo nos dias de hoje, em função dos inúmeros casos que se tornam público. Não penso que se trata apenas disso, hoje vivemos uma clara transição civilizatória que é cultural e institucional. A vigília de uma massa crítica cada vez maior de ativistas anti-racistas e anti-homofobia é um fato, bem como a ampliação dos canais de denúncia e um maior encorajamento para fazê-lo. A tolerância com atos de racismo e homofobia está cada vez menor, entretanto, posturas que visam diminuir a importância desses atos e demonstram dificuldade em aceitá-los como habitus (Bourdieu) estrutural da nossa sociedade também são muitas.

Essas posturas que relativizam os preconceitos podem ser facilmente identificadas entre humoristas, jornalistas e formadores de opinião da grande mídia. Com todo esse espaço, essas opiniões mesquinhas que minimizam discriminações reivindicando um "direito de ser preconceituoso" se espalham como vírus em comentários pelas redes sociais. É só ter estômago para ler comentários, por exemplo, em postagens sobre o caso de racismo com o goleiro Aranha e sobre o caso do incêndio do CTG em Livramento onde um casal gay casaria.  

Vamos ver alguns exemplo dessas vozes: "agora tudo é racismo", "é uma neura de perseguição", "que chatice esse politicamente correto", "eles saem com camisa com 100% negro e eu não posso sair com uma 100% branco", "vamos fazer o dia do hétero também", "racismo está na cabeça dos negros", "raças não existem". 

Desde já, preciso sugerir o documentário "O riso dos outros" de Pedro Arantes para encurtar caminho e não precisar falar muito sobre essa onda de "humoristas" que visam perpetuar piadas racistas, homofóbicas, classistas  e que pra se defender denunciam uma suposta "ditadura do politicamente correto". Esse humor atrasado, quer se apresentar como transgressor ao reproduzir piadas que exalam preconceitos contra minorias e ainda reclamar de uma suposta "censura" advinda de militantes e ativistas sociais e da judicialização. Na verdade, como não criam nada novo e perceberem que ao se utilizar da "liberdade de ser preconceituoso" se promovem na mídia, eles seguem tendo os esteriótipos, o riso das desigualdades e a aceitação acrítica do status quo como matéria prima para o humor.

Qualquer pessoa esclarecida ao ver esse excelente documentário entenderá de onde vem esse discurso, de que lado ele está e o que representa dos dias de hoje. Na fala de um dos entrevistados da película, o professor Idelber Avelar, aprendemos que: "temos ainda uma situação de brutal desigualdade na qual as pequenas conquistas dos grupos historicamente excluídos não podem ser apresentadas como uma espécie de nova ditadura ou nova ortodoxia. Politicamente correto é um termo que designa uma relação fantasmática de uma camada social dominante com uma suposta opressão vinda de baixo que na verdade nunca teve realidade nenhuma". 

Portanto, essa grita contra o politicamente correto é substrato de um discurso conservador e de direita que promove uma disputa contra setores sociais discriminados que, em função dessa transição que vivemos, passam a ter algumas conquistas e incomodam os que sempre naturalizaram preconceitos e discriminações. Se esse é seu lado, reproduza todas essas simplificações que são feitas, pelo menos agora tens consciência disso.

O caso Aranha e do CTG em Livramento nos proporcionaram aprendizados importantes. Além de um clubismo e folclorismo gauchescos fanáticos, muitas pessoas sensatas caíram no "canto da sereia" que relativiza o preconceito recorrendo ao discurso da diferença. O quê? Como assim? 

"No futebol racismo é normal, sempre foi assim, e as vaias ao goleiro negro que denunciou racismo é um direito da torcida", "se eu quiser tenho direito de não gostar de negros e gays, é um direito meu". "Nos lugares do tradicionalismo gaúcho temos direitos de preservar nossa homofobia, aqui é um lugar privado e não vamos casar gays". 

Todos sofismas retóricos desprezíveis. Ninguém tem direito ao preconceito. A tolerância termina quando ocorre a intolerância, como muito bem refletiu Juremir Machado em três textos fundamentais com links no final deste. "Há um jogo retórico no ar: a tolerância teria de ser total, abarcando inclusive a intolerância, para não ser intolerante" diz ele.

Ninguém está acima da lei, se alguém não gosta de negros e gays deve se tratar, fazer terapia, e guardar isso, porque se expressar isso cometerá um crime que atacará a dignidade de milhares de pessoas. 

Portanto, não há lógica plausível em reivindicar o direito à diferença para ser preconceituoso, pelo simples fato de que sê-lo não configura uma diferença, mas sim um crime. Racismo e homofobia não se tratam de opiniões, mas crimes que a civilização e o processo de desenvolvimento humano não toleram mais. 

O preconceito não é um escolha individual, é uma crença (doença) coletiva assimilada por muitos em seus hábitos e pensamentos, essa crença nega o direito de ser feliz a muitas pessoas. Uma morte LGBT acontece, em média, a cada 28 horas motivada por homofobia no Brasil. Dados sobre a morte de jovens negros circulam nas estatísticas diariamente, sem comentar o perfil da população carcerária. Mas podemos pensar em casos individuais em que o preconceito exerce papel definitivo na vida afetiva das pessoas, nas famílias. Quantos gays sofrem além do medo da violência, o medo da rejeição, da exclusão e por isso abdicam de seguir suas vidas plenamente com quem gostam? A bela série de Selton Mello, "Sessão de Terapia" no GNT, tratou de um caso desses nessa sua terceira temporada, Felipe, personagem das quartas-feiras. 

A segunda hipocrisia que destaco não tem apenas pessoas como portadoras, mas os meios de comunicação hegemônicos, ou em uma clave mais genérica, a indústria cultural (Adorno e Horkheimer). Os canais de Tv noticiam alarmados os casos de violência que ocorrem em todas esferas da sociedade, os portais da internet exploram violências domésticas, nas escolas, nos grandes centros urbanos, bradam pela ineficácia da segurança pública.



Não vou entrar aqui no mérito de que a segurança pública vista como guerra contra o crime e as drogas está falida. Vou comentar sobre a violência mais gratuita, aquela que é indicativo do grau de brutalidade e violência que crianças e jovens estão expostos hoje em dia. 

Se pegarmos os trinta últimos filmes que passaram da Tela Quente ou Supercine, que perfil de filme teremos? Isso vale para as outras emissoras. Vamos pensar agora sobre jogos eletrônicos que adolescentes jogam na internet ou no vídeo game. Grande maioria tem como personagem matadores letais, se dão em cenários de guerras e outros eventos violentos. E o esporte que mais cresce em termos de exposição midiática e lucros? Ganhou inclusive reality show, é o MMA, que deixa de lado os melhores aspectos das artes marciais e traz em sua superfície a lógica da "luta livre" bizarra, impossível de dissociar da promoção da agressividade.

Poderia ficar dando outros exemplo, mas diante desse leque básico de violência que nos acessa, é evidente a hipocrisia dos meios de comunicação que cegamente priorizam a lógica da audiência/lucro sem levar em conta nenhum aspecto educativo. Inclusive deixando de cumprir seu papel por ter uma concessão pública de mídia, que deveria atender a um conjunto amplo de exigências formativas para cidadania que nunca foram levadas a sério. 

E quando se pensa em tocar no assunto, democratizar e regulamentar os meios de comunicação, as poucas famílias que comandam a indústria cultural brasileira, gritam desesperadas que sua liberdade está sendo atacada. As mesmas argumentações que desconstroem o grito contra o politicamente correto valem para esse discurso da elite midiática. Com objetivo de reproduzir privilégios e garantir seus mecanismos de manipulação eles tentam nos convencer que os "ditadores" são aqueles que querem mexer no seu monopólio e no seu poder.

Gente, toda essa hipocrisia não está em uma nuvem, ela tem nome e endereço: Danilo Gentili, Rafinha Bastos, Roger (Ultraje), Rodrigo Constantino, Luiz Felipe Pondé, Reinaldo Azevedo, David Coimbra, Percival Puggina, Marcelo Taz, Demétrio Magnoli, Ali Kamel  e muitos outros. Esses são representantes desse pensamento que confunde licenciosidade com liberdade, direito à diferença com direito ao preconceito.

Para eles, rir, brincar com a condição de outro ser, com a desigualdade, a identidade, a orientação sexual, a cor e a religião de alguém pode ser considerado apenas uma brincadeira. É só uma piada? Ou insulto, alienação, ignorância, discriminação, preconceito e falta de compromisso ético com uma sociedade mais humanizada, mais respeitosa?

Pessoas que não sofrem diuturnamente com o preconceito e com violência, caso não se disponham a entender o mundo em que vivem, estão suscetíveis a reproduzir valores e pensamentos (em formato de piada ou não) que corroboram com injustiças inaceitáveis.  No Rio Grande do Sul, infelizmente, temos uma formação cultural preconceituosa na sua espinha dorsal, os lugares sociais dos negros e dos homossexuais estão historicamente demarcados no imaginário coletivo, mesmo a elite intelectual, aquela que acessa o ensino superior, reproduz pensamentos antiquados. 

Isso é visivelmente enraizado, principalmente, nas gerações que estão acima dos 50 anos, viveram quase toda sua vida imersos em ambientes que fazer piada de preto e bicha eram coisas normais, em que gay era ligado a promiscuidade e Aids, em que negros não frequentavam clubes sociais por todo o estado. Essa geração retroalimentou ignorâncias e passou para seus filhos e netos, haja vista, o quão normal é ouvirmos comentários e opiniões extremamente preconceituosas nos nossos meios familiares e sociais. 

Desnecessário dizer que essa análise não pretende generalizar, mas mostrar como estamos diante de confusões sérias, que induzem pessoas bem intencionadas a repetir mantras que não os representam. A internet abriu a possibilidade de lermos mais, todavia, intensificou o que chamo de "opinismo instantâneo", as pessoas opinam e compartilham conteúdo mais rapidamente que os leem com acuro. 

Vamos ficar atentos ao fato de que muitas pessoas estão incomodadas com a transição civilizatória e institucional que estamos vivendo, elas querem manter "aquele tipo de gente no seu lugar", elas estão acostumadas com pobres, negros e gays em determinada posição social que não é na parte de cima da pirâmide, essa "cobertura" é delas. Quando alguém se levanta, exige respeito e mudanças, gera desconforto e então entra em ação o grupo supracitado das "pessoas de bem" e "defensores das liberdades de expressão". Esse grupo formula esse tecido argumentativo conservador e demagógico para anestesiar as mentes que poderiam aderir a um projeto ético e político de sociedade que promova rupturas radicais com a moralidade e as condições sociais atuais.

Hipócritas são atores como vimos, buscam convencer os outros de algo que não é real, por isso são demagogos, palavra que também vem do grego, demos = povo e agogos = conduzir, demagogia seria a arte ou poder de conduzir o povo. É uma forma de atuação política na qual existe um claro interesse em manipular ou agradar todos, visando apenas a conquista do poder político ou ideológico. 

Não vamos cair nesse conto atrasado, que justifica violências de todos os tipos. 

Gregório Grisa



Abaixo os três textos fundamentais de Juremir Machado.













segunda-feira, setembro 08, 2014

Dívida pública brasileira - A soberania na corda bamba.

"O assunto dívida pública é censurado pela mídia mercantilista porque esta se alimenta do abjeto poder financeiro, constituído por abutres insaciáveis que devoram impiedosamente massas humanas em todo o mundo, gerando desemprego, fome e miséria. A abordagem desse assunto pelos órgãos de comunicação é parcial, distorcida e enganosa. 

A Comunicação, sem qualquer escrúpulo com o seu fundamental papel para capacitar a população na tomada de decisões em benefício de todos, denomina a auditoria como calote, aceita e reforça o conceito de dívida líquida, subtraindo do valor real, bruto da nossa dívida, as reservas internacionais, que são aplicações do Brasil no exterior, a juros perto de zero.

Enquanto isso, pagamos juros acima da taxa SELIC, os maiores do mundo. É como subtrair de uma dívida com juros altíssimos o dinheiro parado dentro de um colchão.

A dívida total brasileira no ano de 2013 chegou ao valor aproximado de R$ 4 trilhões; o pagamento de juros e amortizações alcançou R$ 718 bilhões, o que corresponde a aproximadamente R$ 2 bilhões por dia; esse desembolso anual representa 40% do orçamento da nação.

Este filme contribuirá muito para ajudar na conscientização do povo brasileiro, única forma de libertar o nosso país dessa submissão ilegal, injusta e odiosa.
Assista o documentário." Texto retirado da apresentação do youtube. 




Direção, roteiro, câmera e entrevistas: Carlos Pronzato
Direção de Produção: Cristiane Paolinelli
Edição: Henrique Marques
Assistência de Direção/Pesquisa de imagens: Luiza Diniz
Ideia e argumento: Gisele Rodrigues
Assistência de produção/RJ: José Bernardes e Helena Reis
Assistência de produção/DF: Rodrigo Ávila
Assessoria de comunicação: Richardson Pontone
Produção: Instituto Rede Democrática/RJ, Núcleo RJ da Auditoria Cidadã da Dívida Publica e Sindipetro/RJ
Realização: La Mestiza Audiovisual

terça-feira, setembro 02, 2014

Limites da política educacional para ensino médio no Rio Grande do Sul



Há um tema que tem atravessado minha garganta como professor, pesquisador na área da educação e como ser político. Trata-se da tensão existente entre as políticas educacionais promovidas pela Secretaria de Educação do Rio Grande de Sul e como elas tem sido colocadas em prática pelos docentes e gestores nas escolas, em especial nas de ensino médio.

O ensino médio é a etapa educacional que mais sofre de crise existencial no Brasil, ela está a procura de sua identidade no começo desse século. Essa crise pode ser sintetizada da seguinte forma: sabe-se da necessidade de mudanças amplas no ensino médio, mas não se construíram as bases teóricas e práticas (estruturais) que dariam suporte para essas mudanças e nem se encontrou consensos no magistério acerca de qual caminho elas devem seguir.

A SEDUC-RS propôs o Ensino Médio Politécnico cujo arcabouço teórico traz referências do pensamento da esquerda na área da educação e que, há muito tempo, eram reivindicadas por serem porta-vozes de movimentos sociais e sindicatos da área. Isso se deve ao fato de que a eleição de Tarso Genro configurou um avanço político quando comparado aos governos anteriores no RS, então se parte do pressuposto de que nessa conjuntura poderíamos pensar em desenvolver mudanças mais substancias na educação.  

Dentro dessa proposta do Politécnico existem inúmeras demandas que começaram a ser determinadas pelo governo nos últimos anos e que têm sido razão de muitas controvérsias nas escolas. Entre a proposta do governo do RS e a realidade das escolas há um vale gigantesco. Cabe dizer que estamos tratando aqui de processos de mudança que demandam tempo e que não podem ser resolvidos por decretos ou determinações.

Vou listas alguns pontos que me chegaram pelo relato de professores, gestores, das visitas que fiz em escolas, das leituras que fiz sobre o tema e da participação como professor em cursos de especialização na UFRGS onde conversamos com trabalhadores em educação de todo o RS.

Em 2012 a SEDUC-RS, através de suas Coordenadorias, propôs períodos de formação para os professores do Politécnico, em algumas regiões os diretores de escolas se organizaram para fazer formações no formato de grandes seminários congregando as escolas de sua Coordenadoria. Uma semana antes de inciar essas atividades, a SEDUC-RS avisou as escolas que naquele formato não poderia ocorrer a formação e que cada escola deveria desenvolver atividades nas datas previstas, mas separadamente. Esse relato veio da 5° CRE com muita força. Esse ato do governo criou contrariedade desde o começo do processo, uma categoria que não tem cultura de ser plenamente mobilizada para atividades extra sala de aula, de formação ou que exijam mudanças práticas, se fechou mais ainda. 

Também em 2012 a SEDUC-RS, nas suas Orientações Gerais para a organização do ano letivo, trouxe a novidade do Ato Administrativo do Secretário de Estado de Educação que regulamentava a lei federal do piso (Lei 11.738), esse ato trata da carga horária na jornada de trabalho. Nessa regulamentação a hora atividade se consolida como 7 horas, sendo 4 delas na escola para quem tem 20h semanais, além disso define que as horas tratadas são hora relógio e não mais hora aula (50 min ou 45 min). Isso intensificou os ruídos entre governo e magistério, mesmo o governo tentando apresentar o fato como ganho da categoria, na prática se ampliou o trabalho da já sobrecarregada jornada dos professores, que antes da regulamentação tinham uma cultura de distribuição negociada dos seu 1/3 de hora atividade nas suas escolas. 

Em lugares em que já havia resistência de cumprir hora atividade, isso se intensificou em função dessa interpretação feita pelo governo do RS da lei federal. Para além dessa questão, a proposta do Politécnico aumentou de 800 para 1000 horas a carga horária de cada série do ensino médio, exigindo maior disponibilidade dos docentes e fazendo com que as 7 horas de hora atividade fossem cada vez mais cumpridas na escola, inclusive aquelas 3 horas que ficariam a critério do docente. Isso foi e é encarado por muitos professores como punição, um castigo, o que na teoria visava qualificar a educação, na realidade se revestiu em medida autoritária e ampliadora da exploração do trabalho da categoria que já é historicamente desvalorizada pelo Estado. 

Muitos dos processos de formação para o Politécnico propostos pelo governo exigiram dos diretores e coordenadores pedagógicos ginásticas institucionais, mediações de conflitos internos e, em muitos casos, as formações não aconteceram. Os movimentos de diretores na organização de formações coletivas, além de ter sido castrado pelo governo, foi recebido pelo mesmo como enfrentamento. Como parece ser bastante típico do grupo político que ocupa a SEDUC-RS, segundo vários relatos, a secretaria e as Coordenadorias fizeram valer sua força e costumam impor seus formatos e diretrizes mesmo diante de resistências referendadas e argumentadas de algumas escolas.  

Outro fato comentado foi a exigência do governo de que os gestores preenchessem o PDE Interativo (Instrumento de Planejamento de Gestão Escolar), o que mobilizou funcionários e professores a contragosto dando trabalho excedente a esses atores. 

Então, em mais um movimento questionável, a SEDUC-RS determinou que as escolas fizessem seus Regimentos do Ensino Médio Politécnico, oferecendo um Regimento Referência que deixava pouca margem para criação e debate nas escolas. A construção coletiva, princípio básico da gestão democrática, não teve vez nesse processo e podemos dizer isso diante dos inúmeros relatos de projetos de regimentos que retornavam das Coordenadorias por não "atenderem" o regimento padrão. O que na prática ocorreu? As escolas não se dedicaram a esse processo quando identificaram esse engessamento, copiaram o padrão e enviaram para ser aprovado, assim se deu em muitos casos. Mais um momento que poderia ser rico politicamente foi empobrecido  e se tornou gerador de dissidências pela forma como se conduziu.

Muitas ações da mantenedora inviabilizaram avanços democráticos importantes, isso a revelia das intensões e desejos do governo, isto é, independente da boa vontade de quem elaborou os projetos. Algumas medidas se não acompanhadas de estruturas básicas e paciência histórica podem produzir resistências involuntárias, inconscientes e até infundadas que se enraízam no tecido profissional. Criar as condições necessárias para implantar mudanças estruturais é fundamental para que elas realmente aconteçam nas escolas e não morram em estágios superficiais e/ou sejam efêmeras políticas de governo e não de Estado.

Todos esses problemas levantados geram desilusões e frustrações que já são marcas da categoria do magistério. Governos supostamente mais progressistas podem produzir resistências profundas em função das expectativas que se tinham em torno dele. Algumas posturas autoritárias e arbitrariedades podem comprometer um projeto, apesar de todos avanços registrados no que tange a feitura de concursos públicos, de reformas nas escolas e reajuste salariais, mesmo não atingido o patamar do piso nacional. 

Se percebeu um aumento das atribuições dos trabalhadores, bem como  das cobranças acerca da avaliação, por exemplo, que não foram acompanhadas de subsídios para tal execução. O incremento dessas exigências se deram em uma contexto político e econômico de limites do governo do estado, isso aflora as resistências e cria situações em que as contradições não podem ser superadas por determinações legais ou burocráticas. 

Os Seminário Integrado é outro exemplo dessas dinâmicas, salvo algumas escolas em que essa atividade existe e amadurece, em muitos casos além de promover mais trabalho, provoca grande insegurança, pois nem mesmo membros da SEDUC-RS sabem como proceder nessa proposta. Por não "valer nota" há grandes dificuldades de envolver os alunos e motivar os professores a levarem adiante, o Seminário Integrado existe somente de faxada em muitas escolas. A forma quis preceder o conteúdo nesse caso, sem pensar e planejar o como fazer não adianta determinar que se faça. 

Sem a reposição de elementos como treinamentos, financiamento, recursos humanos, valorização da carreira e infra-estrutura o que ocorre na prática é uma "tapação de buraco" exagerada. O professor multitarefa tem como resultado atividades feitas pela metade ou nunca feitas, se aceita o que é imposto e se faz mal feito quando faz. Se expandiu o trabalho e, por muitas vezes, de modo não dialogado com a categoria, se exige certa produtividade dos professores em uma proposta, o Politécnico, que se diz crítica ao produtivismo de cunho capitalista. 

Muitas das iniciativas do governo, principalmente sobre a avaliação, são propostas que se não levarem em conta os pré-requisitos acima, não são factíveis, só precarizam o trabalho do professor em nome da diminuição de índices de reprovação e evasão. Isso abre precedentes para denúncias generalistas do tipo "eles querem que passe todo mundo, só para melhorar os indicadores", pois se impõem modelos de recuperação que sobrecarregam tanto o professor que ele não vai se dar o trabalho de deixar o aluno em recuperação. 

Como um professor com inúmeras turmas, dando 13 horas relógio de aula, o que pode ser 15 períodos (caso tenha apenas 20 horas semanais) vai preparar recuperações paralelas nas aulas do trimestre seguinte, tendo que lidar com todos alunos juntos e elaborar aulas do conteúdo futuro e do conteúdo passado concomitantemente? São essas exigências, feitas em um mundo ideal de gabinete que pouco conversa com a realidade, que atacam alguns interesses das comunidades escolares e fazem a gestão atual do RS ser tão questionada. Estar protegido em um discurso supostamente democrático não foi suficiente para evitar que muitos problemas viessem à tona.

Cabe dizer que todas essas medidas tiveram efeitos distintos em cada região, em cada Coordenadoria do estado e em cada escola. Há coletivos que por suas histórias já trabalhavam com elementos propostos pelo governo e que, portanto, tiveram maior facilidade de assimilação, já outros, ao contrário, vivem dificuldades significativas e os relatos não são poucos nesse sentido.

Não pretendo de modo algum apresentar uma interpretação totalizante, a diversidade das reações e implementações das políticas educacionais é imensa. Todavia, vejo necessidade de problematizarmos com alguma radicalidade a realidade das escolas e buscar dar voz aos sujeitos que fazem sua existência. 

Respeito a trajetória e tenho carinho especial com pessoas que estão na SEDUC-RS, e assim como a maioria do magistério, sei que um governo de direita caso se eleja piorará esse cenário. Entretanto, na minha avaliação, o grupo político escolhido pelo governador para ocupar a pasta da educação não conseguiu construir uma relação com a categoria que permitisse avanços mais significativos e que eram possíveis. 

Há uma visível defasagem na SEDUC-RS no que tange as posturas e propostas para superar os dilemas da educação básica pública, muitas ações são as mesmas do início da década de 90, que, em certo sentido, deram certo no município de Porto Alegre. Porém a política pública da área clama por um salto qualitativo, principalmente no que se refere ao trato com os trabalhadores, com as escolas e na leitura de seus particulares tempos de construção política e pedagógica.

Sei que os dados, os indicadores e as análises quantitativas de grande escalas apontam melhorias nos últimos anos no RS, mas aqui escolho mergulhar nas questões qualitativas, tratar da vida dos professores, das suas frustrações, seus anseios, sua saúde e sua auto-estima. 

Por mais bem intencionado que seja, por mais coerência que a teoria escolhida tenha, nada justifica prescindir do diálogo no campo educacional. A realidade não se enquadra na teoria, daí que impor medidas que exigem tempo, energia, saúde, materiais, estudo e disposição, sem oferecer suprimentos para que isso se materialize, tem inviabilizado um projeto educacional que com razão pretende mudar substancialmente o papel do ensino médio.

Gregório Grisa

Referências:

Me pautei em relatos contidos no livro "Formação a Distâncias para Gestores da Educação Básica: olhares sobre uma experiências no Rio Grande do Sul" organizado por Maria Beatriz Gomes da Silva e Maria Luiza Rodrigues Flores, Porto Alegre, Evangraf, 2014.