quarta-feira, dezembro 23, 2009

O sangue em Chiapas

Todo o sangue tem a sua história. Corre sem descanso no interior labiríntico do corpo e não perde o rumo nem o sentido, enrubesce de súbito o rosto e empalidece-o fugindo dele, irrompe bruscamente de um rasgão da pele, torna-se capa protectora de uma ferida, encharca campos de batalha e lugares de tortura, transforma-se em rio sobre o asfalto de uma estrada. O sangue nos guia, o sangue nos levanta, com o sangue dormimos e com o sangue despertamos, com o sangue nos perdemos e salvamos, com o sangue vivemos, com o sangue morremos.
Torna-se leite e alimenta as crianças ao colo das mães, torna-se lágrima e chora sobre os assassinados, torna-se revolta e levanta um punho fechado e uma arma. O sangue serve-se dos olhos para ver, entender e julgar, serve-se das mãos para o trabalho e para o afago, serve-se dos pés para ir aonde o dever o mandou. O sangue é homem e é mulher, cobre-se de luto ou de festa, põe uma flor na cintura, e quando toma nomes que não são os seus é porque esses nomes pertencem a todos os que são do mesmo sangue.
O sangue sabe muito, o sangue sabe o sangue que tem. Às vezes o sangue monta a cavalo e fuma cachimbo, às vezes olha com olhos secos porque a dor lhos secou, às vezes sorri com uma boca de longe e um sorriso de perto, às vezes esconde a cara mas deixa que a alma se mostre, às vezes implora a misericórdia de um muro mudo e cego, às vezes é um menino sangrando que vai levado em braços, às vezes desenha figuras vigilantes nas paredes das casas, às vezes é o olhar fixo dessas figuras, às vezes atam-no, às vezes desata-se, às vezes faz-se gigante para subir às muralhas, às vezes ferve, às vezes acalma-se, às vezes é como um incêndio que tudo abrasa, às vezes é uma luz quase suave, um suspiro, um sonho, um descansar a cabeça no ombro do sangue que está ao lado. Há sangues que até quando estão frios queimam. Esses sangues são eternos como a esperança.

José Saramago
Fonte: Caderno de Saramago

sábado, dezembro 19, 2009

A contra-revolução jurídica

Está em curso uma contra-revolução jurídica em vários países latino-americanos. É possível que o Brasil venha a ser um deles.

Entendo por contra-revolução jurídica uma forma de ativismo judiciário conservador que consiste em neutralizar, por via judicial, muito dos avanços democráticos que foram conquistados ao longo das duas últimas décadas pela via política, quase sempre a partir de novas Constituições.

Como o sistema judicial é reativo, é necessário que alguma entidade, individual ou coletiva, decida mobilizá-lo. E assim tem vindo a acontecer porque consideram, não sem razão, que o Poder Judiciário tende a ser conservador. Essa mobilização pressupõe a existência de um sistema judicial com perfil técnico-burocrático, capaz de zelar pela sua independência e aplicar a Justiça com alguma eficiência.

A contra-revolução jurídica não abrange todo o sistema judicial, sendo contrariada, quando possível, por setores progressistas.

Não é um movimento concertado, muito menos uma conspiração. É um entendimento tácito entre elites político-econômicas e judiciais, criado a partir de decisões judiciais concretas, em que as primeiras entendem ler sinais de que as segundas as encorajam a ser mais ativas, sinais que, por sua vez, colocam os setores judiciais progressistas em posição defensiva.

Cobre um vasto leque de temas que têm em comum referirem-se a conflitos individuais diretamente vinculados a conflitos coletivos sobre distribuição de poder e de recursos na sociedade, sobre concepções de democracia e visões de país e de identidade nacional.

Exige uma efetiva convergência entre elites, e não é claro que esteja plenamente consolidada no Brasil. Há apenas sinais, nalguns casos perturbadores, noutros que revelam que está tudo em aberto. Vejamos alguns.

Ações afirmativas no acesso à educação de negros e índios

Estão pendentes nos tribunais ações requerendo a anulação de políticas que visam garantir a educação superior a grupos sociais até agora dela excluídos.

Com o mesmo objetivo, está a ser pedida (nalguns casos, concedida) a anulação de turmas especiais para os filhos de assentados da reforma agrária (convênios entre universidades e Incra), de escolas itinerantes nos acampamentos do MST, de programas de educação indígena e de educação no campo.

Terras indígenas e quilombolas

A ratificação do território indígena da Raposa/Serra do Sol e a certificação dos territórios remanescentes de quilombos constituem atos políticos de justiça social e de justiça histórica de grande alcance. Inconformados, setores oligárquicos estão a conduzir, por meio dos seus braços políticos (DEM, bancada ruralista), uma vasta luta que inclui medidas legislativas e judiciais.

Quanto a estas últimas, podem ser citadas as "cautelas" para dificultar a ratificação de novas reservas e o pedido de súmula vinculante relativo aos "aldeamentos extintos", ambos a ferir de morte as pretensões dos índios guarani, e uma ação proposta no STF que busca restringir drasticamente o conceito de quilombo.

Criminalização do MST

Considerado um dos movimentos sociais mais importantes do continente, o MST tem vindo a ser alvo de tentativas judiciais no sentido de criminalizar as suas atividades e mesmo de dissolvê-lo, com o argumento de ser uma organização terrorista.

E, ao anúncio de alteração dos índices de produtividade para fins de reforma agrária, que ainda são baseados em censo de 1975, seguiu-se a criação de CPI específica para investigar as fontes de financiamento do movimento.

A anistia dos torturadores na ditadura

Está pendente no STF Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental proposta pela OAB requerendo que se interprete o artigo 1º da Lei da Anistia como inaplicável a crimes de tortura, assassinato e desaparecimento de corpos praticados por agentes da repressão contra opositores políticos durante o regime militar.

Essa questão tem diretamente a ver com o tipo de democracia que se pretende construir no Brasil: a decisão do STF pode dar a segurança de que a democracia é para defender a todo custo ou, pelo contrário, trivializar a tortura e execuções extrajudiciais que continuam a ser exercidas contra as populações pobres e também a atingir advogados populares e de movimentos sociais.

Há bons argumentos de direito ordinário, constitucional e internacional para bloquear a contra-revolução jurídica. Mas os democratas brasileiros e os movimentos sociais também sabem que o cemitério judicial está juncado de bons argumentos.


Boaventura de Sousa Santos é sociólogo e professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal).

terça-feira, dezembro 15, 2009

O silêncio dos ecologistas da Terra

Leio num semanário local, uma notícia dada de modo efusivo e louvador, que o comitê da bacia do rio ibicuí tem novos gestores, um presidente de Alegrete que representa a associação dos arrozeiros local, como vice o representante da associação dos arrozeiros de Uruguaiana, ora isto deveria servir de profunda preocupação para a sociedade, é como dizia a minha vó - a raposa tomando conta do galinheiro - , pelo que eu saiba foi a lavoura de arroz que mais contribuiu negativamente para a degradação dos rios de nossa região:

- desmatamento das matas ciliares, para plantar gananciosamente até as barrancas, causando o assoreamento,
- milhares de toneladas de agrotóxicos que escorrem para o leito, isto quando o próprio rio não é pulverizado;
-sucção desenfreada das águas não importando se é época de estiagem ou não.
- nem vou falar da piracema.

A pergunta que não quer calar:

Eles, os arrozeiros, vão cuida agora dos rios que eles mesmo destruíram?
Ter o controle do rio é interessante economicamente?
Lhes facilita mais o acesso para seguir explorando o recurso, com ônus só para sociedade?
Aqui em Alegrete até os neoliberais e canibais viraram ecologistas.
Isto acessa recursos públicos para os privados seguirem usufruindo.
Então está explicado.

José Ernesto Grisa
Educador - Mestre em Sociologia

quinta-feira, dezembro 10, 2009

A Helena Negra posta "no seu lugar".



Os dias de glamour da primeira Helena negra foram poucos. No capítulo de ontem, numa cena que fazia uma alusão direta à noção de soberania branca, a personagem negra se ajoelha aos pés da mulher branca e pede perdão. Após isso, dotada de toda autoridade, a "mãe branca e zelosa" dirige um violento tapa na cara na personagem negra que resignadamente aceita a punição.

A cena chocou diversas pessoas. No caso particular das mulheres negras, todas se recusaram a se reconhecer daquela forma e se revoltam contra aquela atitude submissa e passiva diante da violência racial. Aquela cena teve uma repercussão desastrosa em cada uma de nós. A postura submissa da Helena negra vai contra a forma como hoje, e sempre, reagimos à violência racial e ao autoritarismo, seja pelo amparo da lei, seja impondo respeito diante daquele ou daquela que insiste em rememorar os tempos da escravidão, cobrando de nós o eterno deferimento e subserviência. Assim, a trama da novela vai contra a política e debates atuais que visam a igualdade de direitos e a postura autônoma que praticamos no nosso cotidiano e ensinamos a nossas jovens e crianças negras.

A cena de ontem também vai contra os argumentos daqueles que se negam a admitir a existência do racismo no Brasil, que se afirma no imaginário do autor. O capítulo de ontem, por si só, fala da insistente crueldade da elite brasileira de negar o problema do racismo ao mesmo tempo em que, de maneira nefasta, não abre mão de se manter numa posição privilegiada. . A Helena negra é culpada por ter abortado, por ter casado com um homem branco e por não ter "cuidado" devidamente da enteada, numa relação que muito nos lembra mucama e sinhazinha. Não só Helena, mas também a personagem da atriz Sheron Menezes tem a mesmo postura submissa, que paga (literalmente) um alto preço para estar com um homem branco.

Ambas sucumbem diante da supremacia branca retratada na televisão brasileira, ambas não tem dignidade e não representam a luta cotidiana dos homens e mulheres negras que diariamente enfrentam o racismo neste país. Ao que me parece, é muito difícil para a dramaturgia brasileira esconder este ranço ordinário da mentalidade escravocrata e racista.


Luciana Brito
Mestre em História UNICAMP
Movimento Negro Unificado-Bahia"

quinta-feira, dezembro 03, 2009

Poemas

A escola no campo.

Acorda cedo, se arruma

Caminha alguns quilômetros

Senta, aprende o que não existe

Aprende o que esta distante... aprende?

Volta pelo mesmo caminho que veio

E descobre que ao aprendeu nada além de que nada deve aprender

Em casa, se pergunta se pode sonhar

E dorme...

Sem saber quando vai acordar.

Aos trabalhadores.

Somos a força motriz da engrenagem

Que nos faz ficar parados

Enquanto ela se movimenta.

A escola do MST.

Sim, ela existe e

Acredita na construção

De uma nova sociedade

Em que seja capaz de unir

Homens e mulheres

Que lutam pela vida

Pela necessidade da luta

Mais um sonho de concretiza

Muito longe vamos chegar

Sozinhos não estamos, pois

Pela escola da vida lutamos.


OBS: Segue mais uns poema do Vico Calheiros