terça-feira, dezembro 27, 2011

Lições de fim de ano

Jacques Derrida perguntava-se: pode-se aprender a viver? É possível ensinar a viver? O filósofo francês não deu respostas a essas questões. Existirão essas respostas? Cada um de nós as procura e, de certa forma, as encontra a cada dia.
O grande escritor Oscar Wilde achava, com cinismo, que a experiência era apenas a soma dos nossos erros, o que significava não acreditar em nossa capacidade de aprender com o passado e com os próprios erros. Somos melhores do que pensava Wilde.
Muitas vezes, não aprendemos como os nossos erros por vontade de perdoar tudo, de esquecer, de começar de novo com a alma leve, o coração livre, sem rancor nem pé atrás.
     Viver e deixar viver é um modo especial de superar essa contradição entre a necessidade de tirar lições dos erros e o desejo de estar aberto ao que der e vier. Mas viver e deixar viver não quer dizer aceitar tudo do outro nem se permitir tudo em relação aos outros.
 A vida é um delicioso e complexo jogo no fio da navalha, eternamente em busca do ponto de equilíbrio. Perdoar, com freqüência, é um ato de tamanha grandeza e libertação que mesmo abrindo as portas a novos tombos impõe-se como um aprendizado da vida. O ideal, imagina-se, é perdoar sem esquecer. A verdade, porém, é que o esquecimento funciona como um auxilar do perdão. Aprendemos a viver quando aprendemos o momento de esquecer, de perdoar ou, ao contrário, de persistir na lembrança e na recusa por mais algum tempo.
     Todos nós aprendemos a viver a cada dia. Aprendemos a viver quando sorrimos para quem nos abre a porta, perdendo alguns segundos de uma pressa cada vez mais normal, num gesto afetivo que se esvai no tempo e, sem nenhuma exigência de recompensa, se farta no sorriso recebido.
Todos nós aprendemos a viver quando, redescobrindo atitudes arcaicas, damos o lugar no ônibus a alguém, mesmo a um homem, que nos parece mais necessitado daquele assento.
Aprendemos mais ainda a viver quando tudo se resume ao simples prazer de ser gentil, abrir uma porta, cumprimentar alguém, puxar uma cadeira, levantar um objeto do chão, contemplar a felicidade de uma criança no parque, dar sem esperar recompensa, assim mesmo.
     Outro dia, no ônibus, uma moça ofereceu-se para segurar a minha pasta. Não havia a menor necessidade daquilo. A pasta era leve e com uma alça.
Faz quase parte do meu braço. Ela e eu aprendemos um pouco a viver naquele gesto absolutamente sem interesse nem necessidade, a não ser a da civilidade, da gentileza e da alegria de servir aos outros. Entreguei-lhe a pasta contente. Talvez tivesse sido mais prático avançar e ocupar outro lugar, mesmo em pé, mais na frente, mas não era possível deixar de passar por aquele minúsculo aprendizado de cidadania e de vida, o aprendizado da pieguice como cola social.
     Ensinamos a viver quando dominamos as nossas manias, os nossos rompantes, os nossos preconceitos e as nossas certezas para ponderar, sentir, examinar a postura do outro. Nada mais bonito do que ser convencido, abrir mão de uma maneira de pensar em benefício de outra, acolhendo o argumento antes combatido como o fruto colhido numa árvore que se deu o trabalho de nos fazer ver mais claro e nos alimentar. Ensinamos a viver quando nos propomos a aliar razão e emoção a serviço de uma vida simplesmente melhor.
     Aprendemos e ensinamos a viver quando, apesar de nossas tarefas importantes e das nossas sérias responsabilidades, encontramos tempo para brincar, jogar, sonhar, festejar e estar com os outros.
O que significa aprender a viver? O que quer dizer ensinar a viver? Ninguém ensina a vida a outro como se fosse o dono absoluto de um saber a ser repassado numa sala de aula à moda antiga. Na vida, ensinamos e aprendemos o tempo todo, alternando papéis e trocando experiências. A vida é um curso em tempo integral que exige atualização permanente e construção pelo diálogo do saber de cada um. A vida sempre foi interativa.
     São tantos os desafios e impasses. Aprendemos e ensinamos a viver quando respeitamos a crença do outro sem nos deixar intimidar por ela. Aprendemos e ensinamos a viver quando respeitamos o direito à diferença sem perder o direito à crítica. Aprendemos e ensinamos a viver quando descobrimos a tolerância sem fazer dela um álibi para a intolerância dos outros.
Viver é simplesmente ensinar a aprender e aprender a ensinar.
Somos escolas bípedes.
Salvo, talvez, algumas celebridades.

Juremir Machado da Silva

sábado, dezembro 17, 2011

Terceira Carta às Esquerdas


Boaventura de Sousa Santos

Quando estão no poder, as esquerdas não têm tempo para refletir sobre as transformações que ocorrem nas sociedades e quando o fazem é sempre por reação a qualquer acontecimento que perturbe o exercício do poder. A resposta é sempre defensiva. Quando não estão no poder, dividem-se internamente para definir quem vai ser o líder nas próximas eleições, e as reflexões e análises ficam vinculadas a esse objetivo. 


Esta indisponibilidade para reflexão, se foi sempre perniciosa, é agora suicida. Por duas razões. A direita tem à sua disposição todos os intelectuais orgânicos do capital financeiro, das associações empresariais, das instituições multilaterais, dos think tanks, dos lobbistas, os quais lhe fornecem diariamente dados e interpretações que não são sempre faltos de rigor e sempre interpretam a realidade de modo a levar a água ao seu moinho. Pelo contrário, as esquerdas estão desprovidas de instrumentos de reflexão abertos aos não militantes e, internamente, a reflexão segue a linha estéril das facções.



Circula hoje no mundo uma imensidão de informações e análises que poderiam ter uma importância decisiva para repensar e refundar as esquerdas depois do duplo colapso da social-democracia e do socialismo real. O desequílibrio entre as esquerdas e a direita no que respeita ao conhecimento estratégico do mundo é hoje maior que nunca.

A segunda razão é que as novas mobilizações e militâncias políticas por causas historicamente pertencentes às esquerdas estão sendo feitas sem qualquer referência a elas (salvo talvez à tradição anarquista) e muitas vezes em oposição a elas. Isto não pode deixar de suscitar uma profunda reflexão. Essa reflexão está sendo feita? Tenho razões para crer que não e a prova está nas tentativas de cooptar, ensinar, minimizar, ignorar a nova militância. 



Proponho algumas linhas de reflexão. A primeira diz respeito à polarização social que está a emergir das enormes desigualdades sociais. Vivemos um tempo que tem algumas semelhanças com o das revoluções democráticas que avassalaram a Europa em 1848. A polarização social era enorme porque o operariado (então uma classe jovem) dependia do trabalho para sobreviver mas (ao contrário dos pais e avós) o trabalho não dependia dele, dependia de quem o dava ou retirava a seu belprazer, o patrão; se trabalhasse, os salários eram tão baixos e a jornada tão longa que a saúde perigava e a família vivia sempre à beira da fome; se fosse despedido, não tinha qualquer suporte exceto o de alguma economia solidária ou do recurso ao crime. Não admira que, nessas revoluções, as duas bandeiras de luta tenham sido o direito ao trabalho e o direito a uma jornada de trabalho mais curta. 150 anos depois, a situação não é totalmente a mesma mas as bandeiras continuam a ser atuais.



E talvez o sejam hoje mais do que o eram há 30 anos. As revoluções foram sangrentas e falharam, mas os próprios governos conservadores que se seguiram tiveram de fazer concessões para que a questão social não descambasse em catástrofe. A que distância estamos nós da catástrofe? Por enquanto, a mobilização contra a escandalosa desigualdade social (semelhante à de 1848) é pacífica e tem um forte pendor moralista denunciador.


Não mete medo ao sistema financeiro-democrático. Quem pode garantir que assim continue? A direita está preparada para a resposta repressiva a qualquer alteração que se torne ameaçadora. Quais são os planos das esquerdas? Vão voltar a dividir-se como no passado, umas tomando a posição da repressão e outras, a da luta contra a repressão?



A segunda linha de reflexão tem igualmente muito a ver com as revoluções de 1848 e consiste em como voltar a conectar a democracia com as aspirações e as decisões dos cidadãos. Das palavras de ordem de 1848, sobressaíam liberalismo e democracia. Liberalismo significava governo republicano, separação ente estado e religião, liberdade de imprensa; democracia significava sufrágio “universal” para os homens. Neste domínio, muito se avançou nos últimos 150 anos. No entanto, as conquistas têm vindo a ser postas em causa nos últimos 30 anos e nos últimos tempos a democracia mais parece uma casa fechada ocupada por um grupo de extraterrestres que decide democraticamente pelos seus interesses e ditatorialmente pelos interesses das grandes maiorias. Um regime misto, uma democradura. 

O movimento dos indignados e do occupy recusam a expropriação da democracia e optam por tomar decisões por consenso nas sua assembleias. São loucos ou são um sinal das exigências que vêm aí? As esquerdas já terão pensado que se não se sentirem confortáveis com formas de democracia de alta intensidade (no interior dos partidos e na república) esse será o sinal de que devem retirar-se ou refundar-se?

Boaventura de Sousa Santos é sociólogo e professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal).