sexta-feira, maio 30, 2014

As cotas nos concursos públicos federais




Algumas pessoas, por saber que me dedico a entender o tema e que sou entusiasta de políticas afirmativas, tem me perguntado o que penso sobre a adoção de reserva de vagas de 20% para negros nos concursos públicos federais. 

Ouvi debates na rádio, presenciei discussões sobre o tema na universidade e entre amigos, a rejeição a essa medida é bastante significativa. Atribuo essa rejeição, em grande medida, ao grau de descolamento que existe entre o cidadão comum e informações concretas sobre dados do serviço público federal, sobre a realidade do mundo trabalho, as transversais desigualdades raciais do país e o debate sobre o racismo. Racismo esse que também é responsável pelo alto índice de rejeição observado. 

Farei um breve resumo das principais passagens da Nota Técnica do IPEA institulada: "Reserva de vagas para negros em concursos públicos: uma análise a partir do Projeto de Lei 6.738/2013"  que traduz as razões pelas quais tenho convicção que políticas como essas são fundamentais e dever do Estado. 

Desde já sugiro a leitura de todo o documento, há elementos suficientes para entender o cenário em termos de dados e para sanar dúvidas relativas a "opiniões" facilmente reproduzidas que causam falsas polêmicas. O documento faz um convite para que superemos esse nível do debate e eu me filio a essa proposta. O que está entre aspas pertence a Nota Técnica.

"Para proceder este exame foram consideradas as desigualdades raciais no mundo do trabalho e no setor público, em especial; as experiências em curso de igual natureza; bem como as posições dos tribunais superiores e os principais questionamentos dirigidos a ações afirmativas com critério racial." 

Primeiramente é necessário dizer que há comprovação estatística, teórica e política de que "o racismo e seus reflexos na desigual distribuição de recursos é base estruturante das desigualdades no país." 

Alguns dados básicos sobre essas desigualdades são:

"A escolaridade média conquistada pelos negros em 2012 (7,1 anos), contudo, corresponde ao patamar que a população branca já experimentava há mais de dez anos."

"Ainda que comparem trabalhadores com mais de 12 anos de estudo, o rendimento médio dos homens negros equivale a 66% daquele auferido por homens brancos com a mesma escolaridade. No caso das mulheres negras, com este mesmo nível educacional, percebem rendimentos equivalentes a apenas 40% do rendimento dos homens brancos (PNAD, 2012)."

"Esta diferença explica-se pelo fato de que a segregação racial nos papéis relativos às carreiras, posição na ocupação, setor de atividade e nível hierárquico reflete-se na desigualdade salarial entre negros e brancos, mesmo entre aqueles com igual nível de escolaridade. Ademais, o racismo produz e reproduz estas diferenças e atua de forma direta neste quadro."

"O peso do racismo e da sua intervenção na conformação de pontos de partida, acesso desigual a ativos e tratamento social diferenciado também fica evidenciado na administração pública, apesar dos critérios considerados impessoais de seleção para cargos efetivos. Isto se justifica porque, assim como ocorre no ingresso no ensino superior, a despeito de critérios pretensamente neutros de seleção, resta evidente que não há iguais condições de formação e preparação dos candidatos, além de constatarem-se níveis de condição de vida mais precários vivenciados pela população negra." 

Sobre se as cotas nas universidade já não seriam suficientes para mudar a configuração do serviço público federal. Não, ainda mais em curto prazo. 

"Assim, pode-se constatar que o impacto das cotas no ensino superior deve ser paulatino, não representando uma mudança em curto prazo no perfil do mercado de trabalho, muito menos das ocupações públicas. Para estes campos, as ações afirmativas não são, de nenhuma forma, dispensáveis. Pelo contrário, são cada vez mais necessárias para alavancar o esforço afirmativo na formação destes indivíduos, que, ao terem acesso ao ensino superior não têm, de imediato, todos os fatores de vulnerabilização e desvantagem acumulados em sua trajetória, imediatamente sanados." 

Abaixo se problematiza uma demanda muito ouvida de que o justo seria usar o critério social de renda para as cotas. Outra avaliação estritamente moral, que não compreende nem os objetivos de políticas desse perfil, tampouco, a realidade socioeconômica da população. Na nota há esmiuçado os dados relativo a renda da população negra potencial candidata para esses concursos.

"Deste modo, pelo exposto, a prescrição de critério social, sobreposto ao racial, tenderia a diminuir consideravelmente o número de negros que poderiam participar da ação afirmativa. Especialmente, para cargos de nível superior, dentre os quais estão as carreiras melhor remuneradas, em que os negros apresentam maior sub-representação na administração pública federal. Neste caso, a participação deste segmento populacional nos programas de cotas para concursos poderia ser bastante limitada se a opção pelo corte de renda.fosse incluída."

"Cabe considerar que submeter a questão racial à econômica acaba por relativizar a avaliação sobre o papel que o racismo historicamente exerceu como elemento estruturante da desigualdade no país."

Em relação a uma das críticas mais normais no senso comum, a de que cotas ferem a meritocracia, segue avaliação. 

"O primeiro ponto está relacionado com o requisito da meritocracia. Os concursos públicos, sem exceção, assim como acontece nas IES, estabelecem pontos de corte e percentual de aproveitamento mínimo para habilitação em seus certames. Para ser habilitado, o candidato tem que alcançar pontuação mínima nas diversas provas que compõem o processo seletivo e atender a critérios que o promovam para fases seguintes. Há vários concursos públicos que estabelecem que, além de aproveitamento mínimo, os candidatos devem estar posicionados até determinada classificação para serem admitidos na etapa seguinte. Ao final de todas essas etapas, a habilitação significa que qualquer um dos candidatos selecionados tem condição de ocupar o cargo que postula. Estariam, nesta etapa, vencidas as questões de mérito e competência."

"A reserva de vagas não exime os negros de conquistar aprovação em todas as fases dos concursos públicos a que se candidatem. Apenas os candidatos habilitados nos certames e, por conseguinte, considerados aptos a ocupar determinado cargo ou emprego público estarão propícios a se beneficiar da reserva de vagas."

Por fim, o debate acerca da noção de justiça que esse tema provoca está amplamente maturado nas universidades, no judiciário, nos movimentos sociais, chegando a angariar consensos inclusive nos poderes legislativos e executivos do país. 

A rejeição que parte da população tem com medidas como essas, são fruto de crenças de que as coisas se constituíram naturalmente assim, de que a meritocracia é um critério justo, de que racismo não existe e também é fruto da desinformação. Grandes meios de comunicação que já admitiram ser contra as cotas pautados apenas em opiniões corporativas também influenciam nessa rejeição. 

O critério racial para desenvolver políticas públicas é uma alternativa que tem o poder público para atacar as desigualdades de forma objetiva, para além dos discursos, há outros critérios e modelos de ações válidas, políticas universais e ações afirmativas não se excluem e devem ser colocados em prática concomitantemente.  Como afirmaram todos os ministros do STF quando da votação das cotas nas universidades, ações afimativas existem para aplicar a Constituição, pois tem pleno suporte na carta magna, e não para feri-la como muitos de modo oportunista ventilam aos quatro ventos.

Gregório Grisa



quinta-feira, maio 22, 2014

Estado para quem?



Não resta dúvidas de que o Brasil foi chacoalhado politicamente com as manifestações do ano passado. Estamos vivendo uma significativa mudança no modo como os trabalhadores e a juventude encaminham suas demandas e se organizam. Há um amadurecimento político nesses grupos que promovem a aceleração do tensionamento político, as exigências qualificadas fazem com que a luta em si se qualifique.

Não se esta poupando aquele gestor que se propõe minimamente ao diálogo, pelo contrário, se compreendeu que quanto mais progressista for o político da vez, mais ele deve ser cobrado, pois é de sua responsabilidade encontrar alternativas para o imobilismo institucional e a preguiçosa burocracia que descaracterizam a democracia brasileira. 

Outro fator que vale destaque é a forte crise de representatividade dos sindicatos que em descompasso com suas bases optaram por se burocratizar confortados pelo forte processo de cooptação dos últimos anos. As greves que se espalham no Brasil, impactam a realidade e comprovam essa crise de representatividade, pois a base dos trabalhadores se organiza para além do sindicato e se reinventa. 

Greves, ocupações, manifestações, reivindicações são estratégias que vem se mostrando únicas alternativas para conquistas efetivas. Isso desacomoda, incomoda, constrange, irrita e aborrece muita gente, esses sentimentos são reforçados pela campanha rotineira dos grandes meios de comunicação contra essas ações. Todavia, a democracia brasileira ainda não desenvolveu mecanismo participativos, tampouco canais orgânicos que possibilitam que as grandes maiorias intervenham e pensem as políticas públicas. 

Ressalve todos avanços dos últimos anos, a via institucional, que ao meu ver deve ser disputada e utilizada massivamente até seu limite, ainda não oferece subsídio para garantir conquistas substanciais, de direitos e que transformem as condições materiais de vida da maioria da população. 

Hoje o Brasil tem um deficit de moradia de 7 milhões de casas, a reforma agrária desacelerou no último período, o tema da reforma urbana e da mobilidade urbana são centrais para qualquer planejamento político futuro. A especulação imobiliária nas grandes cidades não sofre nenhum tipo de controle por parte do Estado, pelo contrário, esse tem sido parceiro das grandes empreitarias, construtoras e incorporadoras através de financiamento e isenções. (Minha casa minha vida merece reconhecimento, mas não fere essa lógica segregacionista de organizar o espaço urbano).

A já bastante propalada reforma política é uma necessidade visceral sim, mas há outras necessidades como: a auditoria da dívida dos estados e da união, uma reforma tributária que mude o caráter regressivo do sistema nacional que privilegia a concentração de renda e riqueza, a desmilitarização da polícia, a taxação das grandes fortunas e propriedades, a regulamentação e democratização dos meios de comunicação, entre outras pautas (nem entrarei na minha área, necessária refundação da educação básica e valorização da carreira do magistério). 

Vejam que aqui não estou falando em "revolução comunista", mas de ações que muitos países no mundo fizeram, no intuito de retirar o Estado, e seu potencial para investir, das mãos do mercado financeiro especulador nacional e internacional. Hoje o Estado está capturado, principalmente através das dívidas públicas (pagamentos de juros), da compra de serviços genéricos e especializados, e isenções. Soma-se a isso o fato de vivermos uma democracia corporativa do ponto de vista político, em que o mesmo poder econômico que tomou o Estado, define os gestores e representantes (parlamentares de todas esferas) da população.

Ainda antes da eleição pretendo escrever um breve texto para dizer o óbvio que a direita não assume e grande parte da esquerda receia admitir. Dilma e Aécio são diferentes, os governos do PT trouxeram avanços que devem ser reconhecidos e os trabalhadores o fazem, porém a eleição não pode pautar nossa análise de conjuntura, mas isso é para outra hora. 

Gregório Grisa






segunda-feira, maio 05, 2014

O mito

Metamorfose de Narciso – 1937 de Salvador Dalí

O mito imita o real, 

o mito, para muitos, é boa parte do real.

O mito muda o real, o mito mata o real. 

O mito se multiplica no real sem ser real.

O mito mal trata a razão, 

o mito mastiga a morte.

O mito não morre, mito se modifica.

O mito não existe, mas não existe vida sem mito.

O mito transborda o intelecto, o mito contorna o concreto.

O mito mói melhor a desgraça, afaga.

O mito super estima a superstição.

O mito é mais doce que o não, conforta.

O mito nos ensina a não aprender.

O mito é menor que o pensar, é coração vis à vis ao raciocinar.

O mito aumenta o romance, o encanto e a graça,

daquilo que sem mito tende ser apenas nada.


Gregório Grisa