terça-feira, setembro 23, 2014

"Ah! Nega...Dá um tempo..."



Por Ana Maria Gonçalves no caderno Proa, do jornal Zero Hora, sobre "Sexo e as Negas".

Para se entender a polêmica com a série de Miguel Falabella, "Sexo e as Negas", há que se entender o que é racismo. Simplificando, eis as definições de Lawrence Blum, do livro "Não sou racista, mas...":

- Racismo Pessoal - pensamentos, crenças, comportamentos e atitudes individuais.

- Racismo Social/Sociocultural - pensamentos, crenças, comportamentos, atitudes e estereótipos compartilhados por um grupo e expressos através de religião, cultura popular, meios de comunicação etc...

- Racismo Institucional/Estrutural - oriundo de inferiorização, antipatia e/ou descaso perpetrados por instituições (escola, polícia, sistemas de saúde e judicial etc...)

No Brasil temos os três tipos, separados ou em conjunto, não necessariamente de maneira explícita (quase nunca o é) ou através do ódio, como muitos imaginam. Nosso racismo, ao ser comparado ao dos Estados Unidos e da África do Sul, é considerado inexistente ou brando. Ignorantes dos processos históricos que levaram a consequências segregacionistas, muitos creditam isso à boa índole portuguesa, que teria levado à miscigenação e a uma sociedade na qual negros sofrem preconceito apenas por serem pobres. Falemos, pois, de miscigenação.

Somos miscigenados porque colonizadores brancos estupraram escravas negras. É claro que pode ter havido sexo consentido, mas a regra foi o estupro: posse definitiva do corpo adquirido. Moralmente, justificou-se com o mito da negra fogosa, em oposição à branca casta. Há séculos temos lutado contra tal estereótipo que nos traz graves consequências, inclusive a de que servimos apenas para a cama. Somos livres sim, donas de nossos corpos e desejos; e não é porque podemos compartilhá-los com quem quisermos que vamos compartilhá-los com qualquer um. 

Isto pode ser observado, talvez principalmente, nas periferias, onde as mulheres há muito já estão à vontade com suas roupas curtas, justas, seus corpos fora do padrão de beleza ditado pela mídia. Não há necessidade de uma série televisiva que legitime isso, mas de espaços que discutam, a sério, olhares e demandas sobre esses corpos. Aqui, o primeiro capítulo de "Sexo e as negas" falhou, do mesmo modo que falhou ao perder a oportunidade de enfrentar racismo, machismo e também mobilidade física, tema do episódio. De mobilidade social não se falou, colocando as personagens como camareira, cozinheira, recepcionista e desempregada.

Sobre a mobilidade, a grande questão foi conseguir comprar um carro para pegar homens fora da comunidade. Sobre o olhar cobiçoso do homem branco sobre o corpo negro, a cozinheira Soraia não pôde enfrentar seu patrão desde o lugar vulnerável e subalterno no qual Falabella a colocou, porque provavelmente teve medo de ser despedida. O mesmo aconteceu com a camareira Zulma, quando a patroa lhe pediu que guardasse uma joia. Zulma disse que não poderia sair com algo tão valioso, e a patroa respondeu que ninguém pensaria que, em seu corpo, a joia seria verdadeira. Zulma também não reagiu e, inclusive, sentiu-se feliz por poder usá-la por uma noite.

Também não vi protagonismo nas personagens negras. A história da favela da Praia do Pinto, cuja remoção dá origem à comunidade em que vivem, começa a ser contada através da vida de Jesuína, interpretada por Cláudia Jimenez, quando sabemos muito bem do processo de formação das favelas cariocas, por ex-escravos. É também em torno de Jesuína, através de seu programa de rádio e de seu bar, onde as personagens negras se encontram, que gira quase todo o enredo, pautado/narrado pela voz do próprio Falabella. Ou seja: a vida em Cidade Alta acontece em torno de uma mulher branca, e a possibilidade de narrar suas próprias histórias e manifestar seus pensamentos é tirada das quatro atrizes que seriam as principais (como acontece em Sex and the City, inspiração de Falabella), e entregue a um homem que sabemos branco.

Decepciona? Com certeza; mas não surpreende. Aí estão os racismos social e estrutural, perpetuando estereótipos. E disso, negros e negras conscientes dos papeis - reais ou fictícios - que a sociedade lhes reserva, já sabemos quase sem precisar de confirmação, porque tem sido assim desde sempre. Por isto a polêmica antes mesmo da estreia. Aprendemos por experiência também que, sempre que nos manifestamos, há a vontade de nos colocar de volta em nossos devidos lugares de experimento, de meros personagens, de seres desqualificados para o debate. 

Porque negros inteligentes são aqueles que, dando um passo atrás, concordam com e premiam a inteligente máquina colocada e mantida em movimento para perpetuar o racismo, como nos alerta Falabella em sua página de Facebook: "Acabo de ser convidado pela Faculdade Zumbi dos Palmares para o troféu Raça Negra e para debatermos reflexivamente as questões levantadas por Sexo e as Negas. As vozes inteligentes começam a se manifestar!". 

Aliás, o título deste artigo também é dele. Racismo pessoal? Que ele nos responda, quando tiver tempo de pensar nas atitudes e nos termos usados na tentativa de desqualificar e calar mulheres negras que querem ser protagonistas de suas histórias, sem intermediários, sem homens brancos para escrever um roteiro que nos diz quando e sobre o quê falar e calar.

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