sábado, janeiro 04, 2014

Álvaro Garcia Linera: Às esquerdas da Europa e do mundo

Linera: "A esquerda não pode se contentar apenas com o diagnóstico e a denúncia. Precisa construir um novo sentido comum, recuperar a democracia e voltar a reivindicar ideais universais"


O vice-presidente da Bolívia, Álvaro García Linera, foi convidado a participar do IV Congresso do Partido da Esquerda Europeia, realizado de 13 a 15 de dezembro, em Madri. Falando para representantes de 30 organizações da esquerda europeia, Linera apresentou um programa de cinco propostas para superar a situação de debilidade da esquerda hoje na Europa e em outras regiões do mundo. Álvaro Linera é hoje um dos principais pensadores da esquerda mundial, aliando capacidade intelectual com a experiência de governo que vem tendo na Bolívia. Nestes dias onde se fala muito de crise da representação e de crise da política, vale a pena ler as propostas de Linera para a esquerda mundial. As cinco propostas que ele apresentou são as seguintes:

1. Construir um novo sentido comum

A esquerda não pode se contentar apenas com o diagnóstico e a denúncia. O diagnóstico e a denúncia servem para gerar indignação moral e é importante a expansão da indignação moral, mas não gera vontade de poder. A denúncia não é uma vontade de poder. Pode ser a antessala de uma vontade de poder, mas não é a própria. A esquerda europeia e a esquerda mundial, diante desse turbilhão destrutivo, depredador da natureza e do ser humano, impulsionado pelo capitalismo contemporâneo, tem que aparecer com propostas ou com iniciativas. Nós precisamos construir um novo sentido comum. No fundo, a luta política é uma luta pelo sentido comum. Pelo conjunto de juízos e conceitos. Pela forma como, de modo simples, as pessoas ordenam o mundo. Esse é o sentido comum. É a concepção de mundo básica com a qual ordenamos a vida cotidiana. A maneira pela qual valoramos o justo e o injusto, o desejável e o possível, o impossível e o provável. A esquerda mundial tem que lutar por um novo sentido comum, progressista, revolucionário, universalista.

2. Recuperar o conceito de democracia

Em segundo lugar, necessitamos recuperar o conceito de democracia. A esquerda sempre reivindicou a bandeira da democracia. É nossa bandeira. É a bandeira da justiça, da igualdade, da participação. Mas para isso temos que nos livrar da concepção da democracia como um fato meramente institucional. A democracia são instituições? Sim, são instituições. Mas é muito mais do que isso. A democracia é votar a cada quatro ou cinco anos? Sim, mas é muito mais do que isso. É eleger o Parlamento? Sim, mas é muito mais do que isso. É respeitar as regras da alternância? Sim, mas não é só isso. Essa é a maneira liberal, fossilizada, de entender a democracia na qual às vezes ficamos presos. A democracia são valores? São valores, princípios organizativos do entendimento do mundo: a tolerância, a pluralidade, a liberdade de opinião, a liberdade de associação. Está bem, são princípios, são valores, mas não são somente princípios e valores. São instituições, mas não são somente instituições.
A democracia é prática, é ação coletiva. A democracia, no fundo, é a crescente participação na administração dos bens comuns que uma sociedade possui. Há democracia se os cidadãos participam dessa administração. Se temos como um patrimônio comum a água, então democracia é participar na gestão da água. Se temos como patrimônio comum o idioma, a língua, democracia é a gestão comum do idioma. Se temos como patrimônio comum as matas, a terra, o conhecimento, democracia é a gestão comum destes bens. Crescente participação comum na gestão das matas, na gestão da água, na gestão do ar, na gestão dos recursos naturais. Teremos democracia, no sentido vivo, não fossilizado do termo, se a população (e a esquerda trabalhar para isso) participar de uma gestão comum dos recursos comuns, das instituições, do direito e das riquezas.

3. Recuperar a reivindicação dos ideais universais

A esquerda tem que recuperar também a reivindicação do universal, dos ideais universais. Dos comuns. A política como bem comum, a participação como uma participação na gestão dos bens comuns. A recuperação dos bens comuns como direito: direito ao trabalho, direito à aposentadoria, direito à educação gratuita, direito à saúde, a um ar limpo, direito à proteção da mãe terra, direito à proteção da natureza. São direitos. Mas são universais, são bens comuns universais frente aos quais a esquerda tem que propor medidas concretas, objetivas e de mobilização. Na Europa, usaram recursos públicos para socorrer os bancos. Usaram bens comuns para socorrer o privado. O mundo está ao contrário!

4. Reivindicar nova relação entre o ser humano e a natureza

Também precisamos reivindicar, em nossa proposta como esquerda, uma nova relação metabólica entre o ser humano e a natureza. Na Bolívia, por nossa herança indígena, chamamos isso de uma nova relação entre ser humano e natureza. Como o presidente Evo diz, a natureza pode existir sem o ser humano, mas o ser humano não pode existir sem a natureza. Mas não é o caso de cair na lógica da economia verde, que é uma forma hipócrita de ecologismo. Converteram a natureza em outro negócio.
É preciso restituir uma nova relação, que é sempre tensa. Porque a riqueza que vai satisfazer necessidades humanas requer transformar a natureza e ao fazermos isso modificamos sua existência, modificamos a biosfera. Ao modificarmos a biosfera, muitas vezes destruímos a natureza e também o ser humano. O capitalismo não se importa com isso, porque para ele tudo não passa de um negócio. Mas para nós sim, para a esquerda, para a humanidade, para a história da humanidade. Precisamos reivindicar uma nova lógica de relação, não diria harmônica, mas sim metabólica, mutuamente benéfica, entre entorno vital natural e ser humano.
5. Reivindicar a dimensão heroica da política
Por último, não resta dúvida que precisamos reivindicar a dimensão heroica da política. Hegel via a política em sua dimensão heroica. E seguindo a Hegel suponho, Gramsci dizia que as sociedades modernas, a filosofia e um novo horizonte de vida, tem que se converter em fé na sociedade. Isso significa que precisamos reconstruir a esperança, que a esquerda tem ser a estrutura organizativa, flexível, crescentemente unificada, que seja capaz de reabilitar a esperança nas pessoas. Um novo sentido comum, uma nova fé – não no sentido religioso do termo -, mas sim uma nova crença generalizada pela qual as pessoas dediquem heroicamente seu tempo, seu esforço, seu espaço e sua dedicação.
A esquerda tão débil hoje na Europa não pode se dar ao luxo de ficar dividida. Pode haver diferença em 10 ou 20 pontos, mas coincidimos em 100. Esses 100 tem que ser os pontos de acordo, de proximidade, de trabalho. E deixemos os outros 20 para depois. Somos demasiados fracos para nos darmos ao luxo de seguir em brigas doutrinárias e de pequenos feudos, nos distanciando dos demais. É preciso assumir novamente uma lógica gramsciana para unificar, articular e promover ações comuns.
É preciso tomar o poder do Estado, lutar pelo Estado, mas nunca devemos esquecer que o Estado, mais do que uma máquina, é uma relação. Mais do que matéria, é uma ideia. O Estado é fundamentalmente ideia. E um pedaço é matéria. É matéria como relações sociais, como força, como pressões, como orçamentos, acordos, regulamentos, leis. Mas é fundamentalmente ideia como crença de uma ordem comum, de um sentido de comunidade. No fundo, a luta pelo Estado é uma luta por uma nova maneira de nos unificarmos, por um novo universal. Por uma espécie de universalismo que unifique voluntariamente as pessoas.
Isso requer uma vitória prévia no terreno das crenças, uma vitória sobre os nossos adversários na palavra, no sentido comum, ter derrotado previamente as concepções dominantes de direita no discurso, na percepção do mundo, nas percepções morais que temos das coisas. A política é, fundamentalmente, convencimento, articulação, sentido comum, crença, ideia compartilhada, juízo e conceito compartilhado a respeito da ordem do mundo. E aqui a esquerda não pode se contentar somente com a unidade de suas organizações. Ela tem que se expandir para o âmbito dos sindicatos, que são o suporte da classe trabalhadora e sua forma orgânica de unificação. É preciso ficar muito atento também a outras formas inéditas de organização da sociedade, à reconfiguração das classes sociais na Europa e no mundo, às formas diferentes de unificação, formas mais flexíveis, menos orgânicas, talvez mais territoriais, menos por centros de trabalho.

Fonte: Carta Maior

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