sábado, dezembro 21, 2013

Machado de Assis ama cinema argentino


Imprimir uma beleza ímpar nas miúdas rotinas, nas vírgulas e nos silêncios pode acontecer em um ensaio, quiçá noutro. No entanto, tornar essa prática a espinha dorsal de toda uma obra é um feito grandioso. O que Machado de Assis tem a ver com isso? O que o cinema argentino tem a ver com isso? E ainda, o que Machado tem a ver com esse cinema? Onde se encontram? Em mim. Por quê?



Memórias Póstumas de Brás Cubas foi o primeiro “livro de gente grande” que tenho lembrança de terminar. Na adolescência concluí-lo era mais importante do que apreciá-lo ou até entendê-lo em sua globalidade. Na releitura o proveito foi maior, então parti para alguns contos e cheguei a Dom Casmurro, encontrei nas tramas de Machado de Assis outro ritmo de dizer as coisas. Bom, é um clássico da literatura de língua portuguesa, não pretendo chover no molhado.

Dotar de beleza coisas cotidianas, pequenas e simplórias é uma qualidade artística, Machado deu aula. E não estou falando de qualquer beleza, nesse caso é como dar um laço de fita na água, é fazer do fio condutor o ator, o personagem principal. Acessar através da literatura essa capacidade do escritor de embelezar o costumeiro, ao lhe dar um ar de permanente inédito, fez com que me sentisse privilegiado. Saborear saber é privilégio.

Pensando no nosso dia a dia, em que muito se confunde informação com conhecimento, se consome grande quantidade de conteúdo, mas pouco se aprofunda, essa sensação que tive é rara. Hoje fizemos a busca rápida, não lemos textos longos e sem grandes atrativos. Hoje priorizamos as extravagâncias, o efêmero transcendeu o fast food e tomou assento em outras práticas, que não só as alimentares.

O filósofo francês Gilles Lipovetsky, em seu livro “A era do vazio”, afirma que vivemos a rotinização da novidade, isto é, nos saciamos rapidamente diante dos materiais, pela farta oferta, e só nos mantemos atentos ou curiosos com o "novo". Daí advém a ideia de perenizar a novidade, mesmo sendo ela superficial ou algo que não saibamos o que representa.

Quando verei beleza nas sutilezas do corriqueiro de novo? Perguntava-me. Estava ansioso para me sentir privilegiado acessando outro tipo de expressão artística. Aconteceu, o cinema argentino. Não repetirei os elogios que fiz a Machado de Assis, mas eles valem para o cinema argentino, que também já é muito reconhecido, logo não serei tautológico.

"O filho da noiva" 2001

Juan José Campanella e Ricardo Darín formam uma das mais virtuosas parcerias do cinema mundial nos últimos quinze anos. Diretor e ator fizeram juntos quatro filmes de um nível muito alto de delicadeza, cuidado, sapiência com os tempos e contratempos e simplicidade. Claro, acompanhados de excelentes elencos, produziram poesia na tela, as traduções para os filmes no Brasil foram: “O mesmo amor, a mesma chuva”, “O filho da noiva”, “O clube da lua” e o “O Segredo dos seus olhos”.

A inteligência convertida em sensibilidade, somada à exuberância das fotografias, roteiros, interpretações, diálogos e silêncios me fizeram ter novamente aquela sensação de quando li "dizem por ai, mas não tenho certeza, que meu sorriso fica mais feliz quando te vejo, dizem também que meus olhos brilham, dizem também que é amor, mas isso sim é certeza", em Dom Casmurro.

"O segredos dos seus olhos" 2009

O foco, às vezes no “desnecessário”, no tangencial faz com que os filmes tenham o fio condutor que acima adjetivei. Esse protagonismo do roteiro, da continuidade mais lenta, apesar das catarses bem encaixadas, deixa à deriva nossa ansiedade coletiva atual do fugaz, do bastante e da vida como um blockbuster. 
A imagem valorizada e avaliada pelo grau de consumo relacionado a ela não tem eco nessas obras, há ali qualquer coisa que tenuemente critica o projeto ético vigente e propõe substituir a política do vender pela política do sentir. 

A definição convencional de estética é “a ciência que trata do belo em geral e do sentimento que ele faz nascer em nós”, é isso, há uma marcante estética nessas películas portenhas que, simplesmente, me faz bem. Arriscaria dizer que nosso ícone literário, o afro-brasileiro Machado de Assis, teria gostado muito desse cinema argentino.

Gregório Grisa



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