No
meu caso, a exaustão provocou insônia e vontade de compartilhar meus
"10 mandamentos", que podem ser nove ou vinte e um. São minhas crenças,
minha religião, algumas coisas que aprendi ao longo da vida:
(1)
Prefiro agir, me insurgindo contra o status quo, mesmo errando, do que
me resignar a conviver com desigualdades sociais, exploração econômica,
opressão política e iniquidades ou injustiças. Mas se me arrisco a
errar, que sejam erros novos. Portanto: erremos, mas erremos erros
novos. Nada mais melancólico e patético (e regressivo) do que errar
erros velhos.
(2) A iniquidade mais profunda e grave --porque
estruturante--, na sociedade brasileira, é o racismo. Quatro séculos de
escravidão moldaram a matriz a partir da qual as demais desigualdades
têm sido formatadas e experimentadas. Por isso, ao contrário do que
pensa a maioria de meus colegas, considero as desigualdades
sócio-econômicas sobredeterminadas pela tirania da cor. A falta de
consciência desse fenômeno, a meu juízo, resulta da naturalização do
racismo, um processo violento e perverso.
3) Reconhecer a prioridade
do racismo e defender com radicalidade ações afirmativas, como as
políticas de cotas, não me levam a ver os meus críticos como
necessariamente racistas. Há argumentos legítimos e preocupações
respeitáveis contra as posições que defendo. Não concordo com a
demonização dos meus adversários políticos, assim como rejeito essa
atitude quando tomada pelos críticos das cotas, chamando-nos de
"racialistas". Acusações generalizantes impedem o debate necessário e
enriquecedor.
4) Não creio que o formato partido-político tenha
salvação a médio e longo prazos. Temos de conviver com esse animal
bizarro que nunca escapou à lei de ferro da oligarquização, mas
recomendo manter ligado o sinal de alerta máximo. Uma democracia menos
oca e hipócrita que a nossa, menos manipulativa e cúmplice das
iniquidades, terá de mobilizar a imaginação e o protagonismo coletivo
para que sejam inventadas novas dinâmicas e novos mecanismos de
participação, capazes de submeter o Estado e os agentes econômicos ao
controle popular, respeitando-se a liberdade, a diversidade e as
minorias.
5) Não conheço, por ora, nenhum repertório de valores mais
interessante do que aquele que inspira os direitos humanos. A dignidade
da pessoa, entendida e tratada como fim, e não meio, é a pedra de toque
para dar sentido às ideias de democracia e justiça. Por isso, a
individualidade é uma construção, uma categoria e uma experiência
matricial para a construção subjetiva de nós mesmos e de nossa vida
coletiva. Não há nenhuma obra da arte ou da ciência mais bela e complexa
do que uma pessoa em sua singularidade.
Daí a importância de
sacralizarmos a pessoa (sempre fim, não recurso instrumental,
sacrificável em nome de entes supostamente superiores, como a nação, a
pátria, a classe, o partido, a revolução, o bem coletivo, a utopia, a
religião, Deus, etc…). Valorizar a pessoa em sua individualidade, ou
singularidade, significa cultivar e cultuar a diversidade (que não se
confunde com desigualdade, como todos sabemos). Por isso, classificar o
outro, diagnosticá-lo, dizer quem ou o que ele ou ela é, constitui um
ato despótico e brutal.
Definir o outro equivale a uma espécie de Vodu
ontológico e político: espeto o fetiche com o alfinete, cravo um punhal
na imagem e condeno a pessoa a não ser senão aquilo que dela se diz.
Identificar a essência ou a natureza de alguém implica reduzir a pessoa à
qualidade que lhe atribuo, implica também condená-la a repetir para
sempre o ato que justificou a classificação. É isso que faz a justiça
criminal retributiva, cujas sentenças tomam a qualidade de um ato como
espelho da natureza do sujeito. Por isso, afirmo que a privação de
liberdade em uma instituição total é antes de mais nada uma prisão
sintática, uma vez que liga um sujeito a um predicado, a um verbo, a um
ato, de modo exclusivo, unilateral e inseparável.
6) Nosso grande
desafio é transcender o antropocentrismo e pensar/viver uma moralidade
pluriespecífica e transnatural. Para isso, impõe-se aprender com as
sociedades ameríndias, como nos têm ensinado nossos colegas etnólogos,
aqueles com quem mais temos a aprender, hoje.
7) A repugnância que
me causa a crueldade, a humilhação, o preconceito, é a mesma que sinto
ante a brutalidade do Estado, perpetrada por meio de prisões e
instituições policiais (essa violência é praticada antes e sobretudo
contra os próprios policiais). E é ainda maior quando observo o
instituto da punição, suas práticas, sua filosofia, sua estética, sua
ética. A punição é a fusão da vingança -o cativeiro do ódio- com a
impotência inconsciente de si, ou com a negação da finitude (cujo nome
clássico é Hybris ou onipotência). Em resumo, a punição é a troca do
sexo (como entrega e destituição de si, renúncia à identidade) pelo
poder, é também a substituição da compaixão pela violência, do êxtase
pela propriedade.
8) Os valores, por serem belos e defensáveis,
inspiradores e legítimos, não necessariamente são suscetíveis de formar
uma unidade, não necessariamente são indivisíveis ou complementares.
Podem se contradizer, quando aplicados. A política é o espaço em que o
bem precisa da razão pública, coletiva, dialógica, negocial, para
realizar-se, tanto quanto possa realizar-se. Ou seja, cumpre à política
democrática reduzir os danos recíprocos que a aplicação simultânea dos
valores pode produzir: o caso exemplar é o choque entre liberdade e
igualdade. Gênero,
sexo e corpo se afastarão até esquecerem um do outro, deixando de fazer
sentido a geração de identidades como masculino, feminino,
heterossexual, homossexual, bissexual ou qualquer outro nome que
aprisione a contingência dos afetos, sua complexidade, sua variedade
sincrônica e diacrônica.
9) A proibição de drogas, no futuro
próximo, causará horror, indignação e incredulidade a qualquer cidadão
ou cidadã mediana. Pela irracionalidade, pela hipocrisia, pelo
artificialismo contraditório e pelos efeitos genocidas, criminalizando a
pobreza. Nesse tempo, que espero não demore, será óbvio que nosso
problema crônico com a violência tinha sua origem (a qual ditava as
condições de sua reprodução em grande escala) na brutalidade do Estado
contra jovens pobres e negros, em territórios vulneráveis. Nesse futuro
mais lúcido e menos hipócrita, soará inacreditável que a sociedade
brasileira não tenha percebido que o genocídios de jovens negros era o
centro de sua agenda. Ou seja, que a questão policial era chave para a
democracia.
10) Nem tudo que há na sociedade existe segundo uma
vontade e um interesse. Há efeitos de agregação e efeitos perversos -são
consequências inesperadas das ações sociais ou que decorrem de suas
combinações. Há ignorância -nem tudo é transparente, nem mesmo
interesses e os projetos que melhor os expressem e defendam-- e, o mais
óbvio e menos lembrado: há o erro. Assim sendo, é um equívoco primário
deduzir da existência de cada fenômeno, necessariamente, um sujeito
oculto, um interesse subjacente, uma lógica latente, uma finalidade
estratégica se desdobrando.
Portanto, há aquilo que não interessa a
nenhum ator social, o que não significa que os mais hábeis e ágeis, os
que têm mais poder e condições de atuar, deixem de tentar extrair do que
há algum benefício. Entretanto, nem sempre conseguem. Também constitui
um equívoco simples, embora bastante comum, mesmo entre aqueles com
algum treinamento em ciências sociais, supor que aquilo que existe na
sociedade, em expressando o interesse de algum grupo social, fere o
interesse de outro grupo social.
Se o vocabulário adotado é a da
dominação, deduz-se que, necessariamente, o que um polo faz nada mais
representa senão a reprodução do domínio ou a resistência a esse
domínio. Não têm lugar, nessa visão simplificadora, reducionista,
totêmica, as hipóteses de de que algo possa servir a propósitos
contraditórios ou possa gerar efeitos ambivalentes ou possa suscitar
consequências potencialmente duplas ou indefinidas. Ou seja, não cabe no
esquema cognitivo reducionista, a ideia de que nem tudo se encaixa, nem
tudo é funcional, nem tudo atende a imperativos de um sistema, nem
tudo, mesmo se articulando sistemicamente, se conecta a apenas um
sistema.
Quando evoca "o sistema", o pensamento simplificador (que, no
fundo, busca uma espécie de pureza maniqueista e certezas finalísticas
paranoicas, sonhando mundos em que tudo sempre têm sentido, tudo se
encaixa, tudo atende a interesses) sequer se dá ao trabalho de definir
sistema, porque, se o fizesse, teria de renunciar ao funcionalismo, pois
sistema, enquanto categoria, não exclui desfuncionalidade e
contradições, espaços indefinidos, lapsos, intervalos, vazios e
irracionalidades --afinal, além de funções, estruturas e dinâmicas, há
os atores, há os agentes, que por vezes erram, ignoram e por vezes se
autodestróem.
Bem, são apenas anotações insones. Ninguém vai
ler um comentário tão longo. Talvez isso seja apenas um desabafo, depois
de um ano inteiro ouvindo tantas certezas funcionais sobre o sistema, o
capitalismo, a burguesia, o neoliberalismo, e como tudo se explica com
tanta singeleza, bastando que o coração bata do lado certo do peito.
Quem dera as coisas fossem assim tão simples.Quem dera bastasse
pronunciar o nome da besta-fera para que o Outro da besta se revelasse
com transparência cristalina. Prefiro a via difícil da dúvida, sempre, e
começo sempre perguntando qual é o outro da besta-fera?
O que sabemos
sobre o socialismo que queremos? Se não é nada parecido com o império
soviético e seus satélites, se não se confunde com as tiranias que
sobraram e que ainda evocam o santo nome do socialismo em vão, se ainda
não foi experimentado em escala industrial ou pós-industrial, será que
não nos cabe mais humildade cognitiva, mais esforço imaginativo, mais
clareza argumentativa? Afinal, está conosco o ônus da prova. Isso não
nos deve desanimar, mas certamente recomenda menos arrogância de nossa
parte, menos onisciência, menos onipotência, e mais reconhecimento de
que está por ser construído o caminho, de que ainda não o conhecemos e
de que temos de ser intelectualmente honestos para admiti-lo e
politicamente corajosos para explicitá-lo.
Prefiro quem
não sabe a quem tem certeza. E me refiro não só ao projeto estratégico
como também às metodologias e aos caminhos. Destes aqui não trato porque
já temos assuntos em quantidade e em complexidade suficientes para boas
conversas.
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