segunda-feira, outubro 25, 2010

Carta à verdadeira esquerda brasileira


Gregório Grisa

Articulação e ideologia

Primeiramente, é importante destacar a que não se presta o presente documento, faz-se isso para que desde já não haja nenhum tipo de confusão sobre seu conteúdo reflexivo e propositivo. Não se quer aqui relativizar a importância e a necessidade primordial de condutas éticas e comprometidas com princípios fundamentais, absolutamente. Também não se está propondo que a radicalidade propositiva e organizativa da verdadeira esquerda seja abrandada e nem que se conceda menor valor às principais demandas históricas do socialismo.

A presente reflexão não trata desses aspectos, o tema central aqui é a maneira como a verdadeira esquerda brasileira tem confeccionado suas articulações políticas e, para se debater essa questão, é indispensável pensar sobre a ideologia, ou como o imaginário e as múltiplas visões de mundo se constituem e se relacionam. Esse texto não se pretende acadêmico e não é dotado de preocupações com normas ou qualquer tipo de formalismo.

A definição para se construir articulações políticas de esquerda tem de mudar no cenário atual brasileiro, é necessário, entre outras coisas, levar a cabo uma inversão pontual, qual seja: priorizar ou ter mais em conta a possibilidade do desenvolvimento de práticas que modifiquem, de alguma forma, o rumo histórico e o pensamento dos grupos articulados (que nunca terão identidade absoluta), do que pré-requisitos de posturas ideológicas e morais ou práticas já promovidas por esses grupos. Tendo em vista as diferentes e múltiplas condições concretas de cada grupo e de seus indivíduos ao desenvolverem suas atuais ideias e práticas, é urgente que se faça essa inversão.

A possibilidade de unificação na diferença deve estar na frente da necessidade absoluta de identidade ideológica e programática. Os efeitos de uma possível articulação política devem sobrepor os pré-requisitos ou causas carregadas de condicionantes para fazê-la.

O desenvolvimento de uma prática social iluminada pela teoria coerente, não pode ter, nessa teoria, seu ponto de impossibilidade, não deve tê-la como absoluta, pois incorre no erro de não desenvolver o seu critério de verdade, qual seja, a prática social, e assim o fazendo, desliza para um idealismo que prioriza o discurso e a teoria pré-estabelecida. A prática social com base teórica deve privilegiar a possibilidade, o devir, sem buscar a segurança de prever, adivinhar ou em outros termos, pré-teorizar o resultado ainda inexistente de uma articulação ou prática política. Os teóricos de esquerda devem se tornar também práticos sociais e os práticos sociais de esquerda devem se tornar também teóricos. Essas duplas transformações devem ser frequentes e dinâmicas, atravessadas por outro tipo de articulação política e desprendidas das redomas “acadêmicas”, do “voluntarismo pseudoneutro” e “da militância detentora da moralidade”.

A teoria que nos orienta não pode querer, isoladamente, estar certa sobre o futuro, pois se mistificaria em uma postura astrológica de “vidente”. Na práxis, a teoria é constantemente reformulada, filha da incerteza e da possibilidade do real, isto é, das relações concretas entre os sujeitos e grupos. Não são as configurações à priori das forças e grupos sociais que devem balizar as articulações, mas sim seus potenciais, suas possibilidades diferentes de amadurecimento e intervenção social e histórica. Ou seja, devemos transferir os critérios para iniciar e desenvolver as relações entre os grupos sociais das origens “genéticas” de classe para os efeitos ou resultados possíveis dessa articulação ou nova prática social coletiva.

É necessário superarmos a visão simplificadora de que as pessoas de determinadas classes têm um pensamento inscrito, como códigos sociológicos pré-definidos ou genética e culturalmente herdados. O modo de pensar e a visão de mundo das pessoas não são como “pacotes de costumes e valores” que se codificam nos cérebros, mas sim, construções dinâmicas, dialéticas, processuais que guardam em si a possibilidade de diferentes horizontes e de mudanças.

Há, sem dúvida, condicionantes ideológicos reais, advindos de processos históricos socioeconômicos e culturalmente dispostos, no entanto, há a possibilidade de práticas e articulações que apontem para outras direções, mas essas articulações hão de ser construídas, desenvolvidas, criadas, engendradas e é aí que reside o desafio contemporâneo. Como superar os preconceitos políticos e a eterna vontade de unanimidade ideológica que temos em um espaço concreto que “fisicamente” não permite tal unanimidade? As diferentes trajetórias dos sujeitos e dos coletivos impedem essa possibilidade. Como superar as avaliações superficiais e até preconceituosas que são feitas pela esquerda acerca de coletivos e grupos relativamente desconhecidos? Tais avaliações congelam a compreensão e sectarizam as práticas.

A luta de classes está viva e sendo feita pelos adversários (a direita que luta para manter privilégios) com muito mais poder de acesso às pessoas (mídia, entre outros mecanismos) e com mais poder de propor articulações. E a essa conjuntura se deve o fato de as pessoas e grupos sociais terem construído e estarem continuamente construindo suas ideologias, suas visões de mundo de modo compatível com a classe que os acessa com mais volume e frequência. Isso se dá hoje via as tecnologias multimídia, pelo Estado, pelas igrejas, pela mídia televisiva, pelas relações de trabalho, pela escola, pelo monopólio da informação. E nas relações familiares e institucionais, tal pensamento se multiplica em proporções infinitas. Todos esses segmentos reproduzem valores que os constituem e a visão de mundo que mais os acessa. Essa reprodução não é linear, determinista, mas existe e tem diferentes graus de eficácia e abrangência.

Porém esse processo é dinâmico e acreditar na rigidez das ideias dos sujeitos é uma armadilha, pois isso imobiliza para a luta ideológica e política. O modo como as pessoas interpretam o mundo é diferente e passível de mudança constante, essas transformações dependem muito das condições de vida e de articulações que as pessoas acessam. As coletividades contemporâneas, em geral, oferecem um contexto de promoção da alienação e da mistificação da realidade, ou então, reproduzem um conjunto de “verdades” que asseguram a passividade dos sujeitos que, ao perceberem suas relações com o mundo como algo “natural”, não vislumbram outro entendimento.

Pressupor que o sujeito forma seu pensamento e o detém com total noção desse processo seria uma ingenuidade, é a maleabilidade dessa formação que carrega a possibilidade de mudança do pensar. O movimento dialético de constituição de uma visão de mundo não se dá como uma inscrição ou um depósito de valores e ideias no sujeito, esse a desenvolve sem saber que o está fazendo por uma ótica ou perspectiva específica (no caso mais comum, a hegemônica), tanto que, quando atinge um grau minimamente elaborado, ele considera tal arcabouço de ideias constituído uma produção somente sua, puramente individual, o que até não deixa de ser, entretanto, é também fruto de um conjunto de experiências e ideias que o formaram. Seu pensamento agora instituído sofreu mais influências externas da sua conjuntura histórica, do seu meio e de quem mais o acessou do que da sua capacidade autônoma de discernir.

Pode-se dizer que os níveis de ideologia têm suas dosagens condicionadas pelo grau maior ou menor de acessibilidade e envolvimento concreto dos sujeitos às e nas relações sociais, políticas, culturais e econômicas específicas. As ideias são passíveis de mudança não no sentido de as trocarmos por outras absolutamente diferentes, como se faz com um chip de telefone, mas sim, através de um processo incessante de descobertas, de acesso a outros bens e relações culturais e, principalmente, pela mudança concreta das condições materiais de vida. Como Gramsci nos lembra com freqüência, as múltiplas visões de mundo ou ideologias só se tornam historicamente efetivas se constantemente vencerem a disputa pelo senso-comum e, inclusive, parcialmente forem se transformando nele. Entendendo a esquerda como corrente histórica, veja o que esse autor afirma:

Cada corrente histórica deixa para trás um sedimento de senso-comum; este é o documento de sua eficácia histórica. O senso-comum não é rígido ou imóvel, mas se transforma continuamente, se enriquece com ideias científicas e opiniões filosóficas que se infiltram na vida comum. O senso-comum cria o folclore do futuro, que é uma fase relativamente rígida do conhecimento popular num dado local e tempo. (passagem de Gramsci, citado in HALL, Stuart, Da diáspora identidades e mediações culturais, pg. 303).

Para se direcionar a sensibilidade a outro rumo ou a um horizonte mais complexo e maduro, é necessário sentir e interagir com essa possibilidade. Com o perdão da dupla tautologia, mas sensibilidade nenhuma irá ser aflorada ou redimensionada sem sentir outras sensações, e o que pode oferecer isso são articulações diferentes, amplas e desenraizadas do jeito hegemônico de fazer política e enraizadas nas possibilidades orientadas pela eterna busca pela emancipação humana em seu sentido ontológico.

É claro que a noção repetidamente aqui proposta de inversão das causas pelos efeitos, da troca dos pré-requisitos carregados pelas possibilidades do devir para se construir outras articulações políticas não se refere a algo mecânico, isto é, algo como uma lógica ou receita, isso seria uma inversão de predeterminações. Trata-se de uma autocrítica pessoal e coletiva que a esquerda como um todo deve fazer, caso isso não ocorra, essa mesma esquerda, nos moldes atuais de organização e representatividade, tende literalmente a sumir nas próximas gerações ou a ficar limitada a micro células sociais que serão tratadas como grupos caricatos e exóticos mais do que já as tratam.

Há um mito tácito dentro da verdadeira esquerda brasileira de que estabelecer um diálogo com setores da sociedade sem uma explícita identidade ideológica é um fato político que a rebaixaria ética e moralmente. Ninguém se diminui por se relacionar criticamente com diferentes grupos políticos, assim como ninguém é mais “puro” ou coerente por fazer a luta política isoladamente como vanguarda. Essa é uma visão de fazer política ultrapassada, a articulação que propomos aqui não se pauta na busca comunicativa por consensos entre as classes e grupos de diferentes orientações programáticas, mas sim, tem como pauta a construção de alternativas concretas e factíveis através do confronto.

É ingênuo ter o consenso como centralidade, o que define a identidade e a práxis da esquerda é o confronto, seja ele político, social ou ideológico. Sendo assim, para que haja o confronto, é necessária a relação, isto é, a articulação. Se o modelo de articulação política que a esquerda vem produzindo não dá conta de desenvolver renovação e ampliação dos seus debates e muito menos de construir um confronto, este “constituidor” da prática social de esquerda, que responda a essas demandas.

A esquerda política hoje, salvo alguns movimentos sociais populares, está engolida pelo aparato legal e eleitoral do Estado. As últimas eleições servem de exemplo claro de que, ou a esquerda se recicla enquanto práticas e articulações, ou ficará cada vez mais refém do formato eleitoral excludente que privilegia o capital e a fama e irá realmente rumar para um ostracismo no que se refere, principalmente, à capacidade de acesso às novas gerações, cada vez menor.

Portanto, é urgente que, ao mesmo tempo em que a verdadeira esquerda se diferencie dos “pseudocomunistas” (apoiados e aparelhados nos grêmios escolares, no movimento estudantil e no discurso da governabilidade do Estado) e da nova direita com roupagem “ecológico-democrática”, ela também vislumbre possibilidades de diálogo, articulações e confronto. Que se repense e deixe de se ver somente como guardiã da coerência, da ética, da moralidade e da verdade, mas transcenda esse olhar catedrático para melhor entender, interagir e intervir na realidade que se apresenta, cada vez mais, dinâmica e complexa. Que se perca a vergonha de fazer um tipo de política contemporânea que contrasta com a tradicional, pois isso não desqualifica a ação nem a torna menos original e honesta, ao contrário, é um ato de contextualização e de reinterpretação do atual bloco histórico brasileiro.

Um comentário:

Anônimo disse...

Thanks :)
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