domingo, outubro 10, 2010

Crítica do filme Tropa de elite 2

“Tropa de elite 2” poder ser analisado sob várias óticas, as duas principais seriam as que se referem ao seu viés artístico, isto é, fotografia, jogo de câmeras, música, narrativa e ao seu viés político, ou seja, o que seu conteúdo pode colaborar para o debate sobre a temática que aborda – violência, seja a institucional (legitimada pela ação da Polícia) seja a que decorre da desigualdade social. O filme é melhor que o primeiro, não há dúvidas, mais completo, mais complexo e mais bem feito.

Do ponto de vista artístico, a obra é refinada quando deve, rústica quando necessita e as cenas de ação são vigorosas e reais como precisam ser. Sobram qualidades e nem que buscássemos minúcias para as técnicas utilizadas, não teríamos conhecimentos específicos para sustentar qualquer crítica negativa. O roteiro tem uma virtude que chama a atenção, fazer do “mocinho” narrador, no caso o coronel Nascimento, o porta-voz de uma visão de mundo que contrasta com a do diretor do filme e com a do próprio ator que o protagoniza, Wagner Moura.

Essa qualidade do roteiro que nos referimos é central, pois a primeira vista pode parecer que o pensamento do Nascimento é a proposta política e pedagógica do filme, por se tratar da história da vida do personagem principal. Isso pode provocar uma confusão, a de que a conduta agressiva e intransigente do Capitão Nascimento no Tropa de Elite (que não é tão aparente no segundo filme, em face da consciência desenvolvida pelo personagem) é a que deve ser adotada e legitimada pelas Polícias e demais forças coercitivas sustentadas pelo Estado. Não raras vezes, no cinema, ouvimos gritos de incentivo quando Nascimento começa sua saga de vingança pessoal contra o “sistema”, nesse caso a idolatria ao personagem impede uma visão mais ampla do que propõe a trama. A visão de mundo de José Padilha e Cia (diretor e produtores do filme) tem muito mais sintonia com a do personagem Deputado Fraga, que ao contrário do Coronel Nascimento atua em plano secundário na trama. Fraga, que também é professor de história, é apresentado como um sujeito de “esquerda”, defensor dos direitos humanos e dos “maconheiros”.

Diferente do primeiro filme, em que o narrador começa o filme pensando de um jeito e termina pensando da mesma forma, nesse Nascimento muda seu modo de ver a realidade. Essa mudança não se dá pelo acesso de algum conhecimento acadêmico, mas sim pela constatação de que a resolução dos conflitos sociais (que num primeiro momento engloba unicamente a questão do tráfico) é impossível enquanto existir uma estrutura que, para existir, precisa e mantém esses conflitos. Com isso, mais maduro, Nascimento tem a sapiência de ler melhor e com mais profundidade essa realidade. Já Mathias, que muda no primeiro filme, passando de um bom menino que estuda e quer mudar a sociedade para um policial honesto, treinado para matar, no Tropa 2 ele não muda, segue o mesmo policial ‘correto’, que “não da chance para vagabundo”.

Saindo um pouco da parte técnica do filme, passando para o teor e o potencial qualificado de debate sobre segurança pública e corrupção no Brasil, o filme é didático porque se aproxima da realidade, é forte e corajoso. Isso já é muito importante, ele atinge um nível de discussão e de análise na narrativa alto para o que se tem visto no cinema. Teoricamente, a explicação que existe de alguns fenômenos da realidade no filme se aproxima mais de uma leitura sociológica sistematizada do que de leituras de senso-comum, e só isso já é um avanço, entretanto, não podemos deixar de salientar um conjunto de reducionismos de análise dos produtores, que inclusive ocorrem pelo formato do cinema.

O primeiro reducionismo ou possível confusão é apresentar um suposto posicionamento de esquerda como sinônimo de um pensamento ligado a defesa dos direitos humanos. São coisas diferentes, que combinam e se completam, mas não tem a mesma proporção nem a mesma origem. Ser de esquerda hoje, é algo muito mais vago e amplo do que era há cinquenta anos, mas em geral, é ter uma posição que denuncia o capitalismo como modo de produção, defende o socialismo, o fortalecimento do Estado, e a socialização dos meios de produção da sociedade. Já ser um defensor dos direitos humanos não pressupõe as prerrogativas socialistas, mas sim lutar pela dignidade das pessoas em geral e com especial atenção àquelas que por várias razões entram em conflito com a lei, na criminalidade e sofrem processos desumanizadores como a tortura e a privação da liberdade.

Outra redução, que é compreensível pela abrangência da temática, é entender o “sistema” com um fim na esfera política, isto é, que na organização política do Brasil, que é corrupta, promíscua, arcaica e está em crise de representação, se encerrasse os problemas da violência e da miséria. Há no mínimo dois aspectos a se adicionar nesse “sistema”: o poder da livre iniciativa privada, do capital estrangeiro, enfim as relações econômicas que, apesar de ser intimamente ligada a política institucional, transcende a essa e não tem responsabilidade social de nenhum caráter e muito menos é responsabilizada pelo Estado. O outro aspecto a ser somado é o cultural, a construção cultural e dos valores que essa estrutura da sociedade constitui ciclicamente, o como os sujeitos desenvolvem suas condutas e visões de mundo imersos em um tipo de cotidiano como o que temos nas periferias das grandes metrópoles. E aqui, se faz necessário destacar que, na realidade, o formato de Estado Democrático de Direito adotado pelo ordenamento jurídico brasileiro, só se reproduz negando direitos, isto é, há de existir um contingente grande de sujeitos que não acessem os bens culturais e materiais produzidos para que esta forma de Estado, pautada em privilégios, se mantenha.

Enfim, essas são reflexões acerca de mais um bom filme nacional que estava sendo esperado como um dos grandes eventos culturais desse ano no país. Trabalhos desse nível caso se tornassem rotina na produção da arte em geral poderiam dar a essa uma visibilidade e um poder como ferramenta de debate e acesso a cultura bem maior do que tem hoje.

Anna Luiza Marimon e Gregório Grisa

10/10/10

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