quarta-feira, abril 25, 2012

STF vota hoje a constitucionalidade das cotas contra o racismo brasileiro

Por Juremir Machado


O sistema do mérito, numa situação de falta de equivalência de oportunidades de preparação, é um sistema de hierarquia social que reproduz a desigualdade dominante favorecendo a minoria privilegiada.
Quase toda contestação da validade das cotas raciais revela um racismo mal-dissimulado e um desejo explícito de manutenção de favorecimentos encobertos pela falácia do mérito.
Não há mérito límpido em se se vencer uma competição para qual a qual o oponente não pôde se preparar em condições equivalentes, adequadas, justas, legítimas e paritárias.
O sistema do mérito é uma ilusão de ótica que favorece o ilusionista.
A crítica às cotas parte de um falso universalismo abstrato de valores em defesa de privilégios concretos: as melhores vagas, das melhores universidades públicas, especialmente dos seus mais concorridos cursos, reservadas para os mais aquinhoados, oriundos das famílias mais abastadas e das melhor escolas privadas.
Salvo exceções
Sempre há exceções.
Inclusive em se tratando de escolas públicas.
O Brasil poderia não ter cotas se:
1) Não fosse racista
2) Proporcionasse vaga no ensino superior para todos que fosse aprovados num exame de saída do ensino médio
3) Melhorasse radicalmente o ensino médio e fundamental.
Como não faz e não fará isso tão cedo, precisa compensar aqueles a quem deve depois de séculos.
Como dizia Joaquim Nabuco, o maior intelectual brasileiro de todos os tempos, os negros escravos ergueram o patrimônio brasileiro e jamais foram indenizados por isso: “Tudo o que significa luta do homem com a natureza, conquista do solo para a habitação e cultura, estradas e edifícios, canaviais e cafezais, a casa do senhor e a senzala dos escravos, igrejas e escolas, alfândegas e correios, telégrafos e caminhos de ferro, academias e hospitais, tudo, absolutamente tudo que existe no país, como resultado do trabalho manual, como emprego de capital, como acumulação de riqueza, não passa de uma doação gratuita da raça que trabalha à que faz trabalhar”.
O resto é conversa reacionária, arrogante, fiada, asquerosa, retrógrada, enfim, de jornalistas com cérebro de ervilha como Ali Kamel, Reinaldo Azevedo e Demétrio Magnoli.
Ou racismo de conservadores desmoralizados como o senador Demóstenes Torres.
Tudo falácia.
É falso dizer que um estudante com maior escore perde a vaga para um com menor escore por critério de cor.
Esse erro de interpretação decorre de uma leitura incorreta da competição.
Pois é de cor que se trata. Raças não existem.
São dois concursos num só, divididos em fileiras, em chaves.
Na fileira indiferenciada, normal, concorrem x candidatos a x vagas.
Na fileira para cotistas, concorrem x candidatos a x vagas.
Se alguém não entrou na fileira indiferenciada, perdeu para quem fez escore superior na mesma fileira.
É como um time de futebol da chave A reclamar que ficou de fora fazendo mais pontos que outro na chave B.
Está na regra do jogo.
A Constituição brasileira diz que não se pode tratar desigualmente ninguém com base em preconceito.
Nada diz quanto a tratar desigualmente pessoas para combater preconceito.
Se as cotas são inconstitucionais por reservarem tratamento diferenciado a um grupo de pessoas, praticamente tudo é inconstitucional na estrutura de compensações do Estado brasileiro: meia entrada para estudantes, assentos para idosos, atendimento prioritário em bancos, incentivos fiscais, etc.
O Dem, logo o Dem, que contesta a legitimidade das cotas alegando que produzem tratamento diferenciado, sendo todos iguais perante a lei, vive defendendo compensações e benefícios para o “setor produtivo”.
Como diz Nabuco: “A reparação não começou ainda. No processo do Brasil, um milhão de testemunhas hão de levantar-se contra nós, dos sertões da África, do fundo do oceano, dos barracões da praia, dos cemitérios das fazendas…”
As cotas não criam racismo.
Vale a pena ler a tese de João Vicente Silva Souza, “Alunos de escola pública na Universidade Federal do Rio Grande do Sul: portas entreabertas”, defendida no Programa de Pós-Graduação em Educação, orientada pela professora Malvina do Amaral Dorneles.
Ele diz: “Sabemos que os cursos de maior prestígio, densidade ou argumento de concorrência, geralmente são os que mais evidenciam as assimetrias socioeconômicas representadas em números e percentuais. Basta considerarmos o caso dos cursos cujo ‘ponto de corte’ costuma ser muito alto (Medicina, Direito diurno, Administração diurno, Biomedicina, Publicidade/Propaganda, Design Produto, Design Visual e Relações Internacionais). Em tais cursos, nenhum dos candidatos autodeclarados negros de Escola Pública se classificou através da adoção do Sistema de Reserva de Vagas no ano de 2008”.
O mérito depende, salvo exceção, do poder econômico.
O racismo é mantido e atualizado pela exclusão ardilosa dos negros sob a capa do universalismo.
Nabuco previu: “Essa obra – de reparação, vergonha ou arrependimento, como a queiram chamar – de emancipação dos atuais escravos e seus filhos é apenas a tarefa imediata do abolicionismo. Além dessa, há outra maior, a do futuro: a de apagar todos os efeitos de um regime que, há três séculos, é uma escola de desmoralização e inércia, de servilismo e irresponsabilidade para a casta dos senhores, e que fez do Brasil o Paraguai da escravidão”.
O pior racismo é o que não quer ser visto como tal, aquele que se disfarça de universalismo abstrato.
Tomara que o STF faça hoje a sua parte.

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