quinta-feira, julho 17, 2014

"Cotas nas universidades brasileiras" entrevista para Caros Amigos - Gregório Grisa



Com o objetivo de formular uma reportagem sobre as cotas no Brasil a revista Caros Amigos me convidou para tratar do tema. Transcrevo toda entrevista abaixo, a reportagem está na última edição da revista já nas bancas. 

Entrevista feita por Laís Modelli.

Qual a importância em se oferecer cotas raciais nas universidades brasileiras?

Gregório Grisa: a adoção de políticas afirmativas desse tipo se deu por conta do diagnóstico de que a participação de pessoas negras no ensino superior era muito baixa em relação à proporção desse grupo na população. Identificada essa desigualdade no acesso a um direito que é a educação, se pensou uma política pública que tivesse capacidade de intervenção no curto e no médio prazo. Diria então, que a importância primeira é garantir acesso a um direito.

O processo de formação da sociedade brasileira e o tipo de racismo aqui desenvolvido são muito particulares. A divisão social do trabalho foi acompanhada de uma divisão racial do trabalho, os negros foram sistematicamente excluídos das esferas dos direitos sociais. Quando se somou a isso a eficácia do racismo institucional, encontrou-se no acesso ao ensino superior a expressão mais radical dessas desigualdades.

As cotas hoje representam um modo de aplicar o princípio da igualdade material, como lembrado pelos ministros no julgamento da constitucionalidade dessas políticas no STF. Percebeu-se que políticas de caráter universal não se mostravam eficazes na promoção da igualdade concreta e que somente a garantia na legislação do princípio da igualdade formal era insuficiente, daí pensar em políticas específicas.
Bom lembrar que a grande maioria de experiências de cotas nas universidades na década de 2000 foram iniciativas das instituições universitárias no exercício de sua autonomia e que pouquíssimas usavam exclusivamente critério racial na sua reserva de vagas.

De acordo com o IBGE, o percentual de negros entre 18 e 24 anos no ensino superior passou de 10,2% em 2001 para 35,8% em 2011, podemos dizer que isso já é resultado dessas políticas. A formação de nível superior é um dos grandes fatores de mobilidade social e reconhecimento, e o acesso a esse estágio de ensino foi historicamente negado a população negra no Brasil, as cotas pretendem mexer um pouco nesse cenário, dentro do seu limite de alcance, daí sua importância.

Elas são de fato eficientes para incluir negros, indígenas e alunos de baixa renda no ensino superior?

Gregório Grisa: o dado do IBGE que mencionei acima responde de alguma forma essa questão. O aumento do número de negros, indígenas e de alunos de classe popular na universidade é notório nos últimos 10 anos. Porém, no universo de formandos, esses grupos ainda são pouco representados, principalmente em cursos mais prestigiados e disputados.  Na carreira de medicina, apenas 2,66% dos concluintes em 2010 eram pardos ou pretos, em Comunicação Social eram 5,11%, por exemplo. Esses números tendem a crescer no próximo período em função da Lei 12711 que prevê as cotas nas IES (instituições de ensino superior) federais. Então sim, creio que as cotas são eficientes ao incluir esses grupos sociais, sem contar que essas medidas não qualificam apenas a vida de quem a usufrui diretamente, mas elas também oxigenam a universidade e representam um aperfeiçoamento da nossa democracia de baixa intensidade no que tange a igualdade material.

Penso que duas coisas devem ser destacadas sobre a questão da renda:

1 - o critério de renda, que a lei citada inseriu nas cotas é uma questão a ser mais bem pensada na minha avaliação, pouco se ouviu as universidades que já tinham experiência em políticas afirmativas quando o congresso concebeu a lei. A aplicabilidade do critério de renda tem sido razão de desgaste institucional para algumas universidades que precisam fazer mutirões para avaliar documentações comprobatórias, por vezes sem pessoas preparadas para isso. A meu ver, a exigência da escolaridade em escola pública ataca em alguma medida a questão socioeconômica, o critério de renda não pode ser pensado no abstrato sob pena de em algumas regiões do país restringir a possibilidade de participação de candidatos que poderiam se enquadrar nos critérios étnico-raciais e de escolaridade. Ou seja, não é realista pensar que serão os mais pobres entre os mais pobres que se beneficiarão das cotas, acessar o ensino superior demanda o acúmulo de certo capital cultural e social que é difícil enquadrar em valores exatos de renda. Sem precaução ao utilizar-se o critério de renda pode estar-se excluindo os candidatos mais preparados para usufruir deste direito e ainda encontrar problemas de baixa ocupação das vagas.

2- a segunda questão tem tudo a ver com a primeira, o percentual de estudantes negros que finalizam o ensino médio é muito aquém do índice de brancos. A segregação vem antes do ensino superior, com isso o púbico que consegue terminar o ensino médio talvez tenha um mínimo de recursos econômicos na família, o que não dirime o fato de ele sofrer com o racismo, de ter freqüentado um ensino de qualidade deficitária e tão pouco de ter dificuldades materiais diferenciadas.

Como garantir a permanência do aluno de cotas sociais na universidade?

Gregório Grisa: esse é o grande desafio das universidades brasileiras na próxima década. Sem dúvida que permanência passa por questões materiais como: bolsas, auxílios, transporte, alimentação, moradia; seria redundante dizer que programas especiais de apoio devem ser criados nas universidades, essas terão de usar da criatividade e vontade política para buscar alternativas. O incremento do orçamento do PNAES (Plano Nacional de Assistência Estudantil) é fundamental, bem como, elaboração de apoios que transcendam os critérios socioeconômicos que condicionam o recebimento de assistência estudantil.
Penso que para além das questões materiais há o desafio pedagógico.

A formação dos professores universitários ainda é um tabu em algumas instituições, principalmente nas áreas mais duras. A mudança do público que entra na universidade tem de ser acompanhada de uma mudança no modo como se pensa o ensino, a pesquisa e a extensão. Desenvolver a capacidade de reconhecer conhecimentos trazidos pelos alunos, seus códigos culturais e sociais é um tema de casa para a universidade. As pessoas só permanecem em ambientes que se sintam acolhidas, em que são valorizadas. Portanto, a prática de sala de aula, o repensar dos currículos, a adaptação de métodos avaliativos são fatores que serão determinantes para a permanência e futura diplomação desses alunos.

Vale dizer ainda que quanto mais as instituições se democratizarem internamente e incluírem os alunos nas instâncias deliberativas e políticas, maior será o potencial de permanência. Muitas universidades preservam lógicas de funcionamento burocráticos enrijecidos, estruturas representativas pouco democráticas, com isso os alunos não desenvolvem uma cultura de participação tão importante pra que eles se integrem e tenham subsídios para enfrentar possíveis dificuldades em sua trajetória acadêmica. 

Por que a sociedade ainda reluta em aceitar o sistema de cotas, principalmente as raciais, nas universidades brasileiras?

Gregório Grisa: não sei se podemos dizer que a sociedade como um todo reluta em aceitar as cotas. Poderíamos argumentar, em contraponto, que o fruto do amadurecimento desse debate na última década foi a constituição de certo consenso sobre a matéria nos três poderes da república. O executivo federal é entusiasta das cotas, o STF aprovou a constitucionalidade por unanimidade, o congresso formulou, votou e aprovou a Lei da cotas, essas instâncias são representativas da sociedade.  Da para adicionar a isso a própria comunidade acadêmica brasileira que em sua grande maioria debateu o tema nos últimos anos e optou por adotar tais ações afirmativas, então eu diria que as cotas têm ampla vantagem no debate nas instituições públicas.

Entretanto, compreendo de onde vem tua pergunta, da chamada “opinião pública”. É claro que se levarmos em conta as grandes corporações de mídia no país e seus “formadores de opinião” há significativas resistências às cotas. O diretor geral de jornalismo da Rede Globo inclusive tem livro contra as cotas. Penso que as razões para essa oposição tão forte se devem ao fato de que políticas afirmativas questionam um conjunto de “verdades” do pensamento liberal ou neoliberal que tem nos valores da meritocracia, do esforço individual seus pilares.

Além disso, esse grupo opositor tem uma interpretação acerca das relações étnico raciais brasileiras bastante particular, que entra em confronto com a literatura acadêmica mais séria, pois pra eles o racismo é um problema menor, mais ligado a subjetividade do que condicionador de papéis sociais.
Infelizmente esses grupos midiáticos têm um alcance muito grande à população e quando o cidadão comum se depara com interpretações mais simplistas e muitas vezes oportunistas, é conquistado. Quando se faz um debate mais rigoroso sobre esse tema muito pode ser sanado no que se refere a um olhar mais ingênuo sobre políticas afirmativas.

Além da medida de cotas e bonificação no vestibular, como o ensino superior pode ajudar a incluir esse público na universidade?

Gregório Grisa: acho que essas medidas são um avanço, mas a demanda reprimida no Brasil é muito grande. Esse ano mais de 9,5 milhões de pessoas inscreveram-se no ENEM, sendo que ensino superior público e privado juntos oferecem pouco mais de 2 milhões de vagas. A rede privada de ensino superior ainda tem 73% das matrículas, isso significa que as vagas em universidades públicas são ainda muito restritas, portanto, aumentar as vagas é um caminho constante e necessário.

Outro elemento a ser aprimorado é a relação da universidade com o ensino médio, há um funil muito grande nessa etapa no que tange a formação de jovens negros e de classes populares. O pacto federativo é um limitador de alguns avanços quando deixa a cargo dos governos estaduais, com sérias restrições de investimentos, as escolas de nível médio.

A União diante dos possíveis aumentos de recursos para educação dos próximos anos, com os royalties do petróleo e a aprovação do PNE, terá de encontrar alternativas para atacar os problemas estruturais do ensino médio. Sem essa intervenção, vejo muitas dificuldades para o Brasil dar um salto de qualidade no nível médio, lembrando que 88% das matrículas de nível médio no país são em escolas públicas.

Incluir as pessoas na universidade é um passo, mas a vida desses alunos durante sua formação requer um conjunto de outras variáveis que transcendem as competências de um sistema de ensino superior.

Em linhas gerais, quais as falhas e os acertos do sistema de cotas no ensino superior público brasileiro? E no caso da UFRGS, quais os acertos e erros desde 2008?

Gregório Grisa:  penso que a multiplicidade de modalidades de cotas adotadas na última década no Brasil dificulta o trabalho de apontar falhas e acertos transversais. O que pode ter dado certo em uma região do país e em uma universidade pode ter dado errado em outros casos. Para se ter idéia até 2012, antes da Lei das Cotas no sistema federal, 70 universidades públicas, das 96 que existiam, tinham algum tipo de ação afirmativa.
Os principais beneficiários dessas políticas são os alunos oriundos de escolas públicas (60 universidades), para população negra havia ação afirmativa em 40 instituições, dessas 37 mesclavam critério de escolaridade junto com o étnico racial. Creio que os limites de ordem técnica são hoje até maiores do que os políticos: a garantia da ocupação real das vagas é um desafio colocado. O SISU é um sistema um tanto descolado das estruturas das instituições e essa adequação e diálogo entre essas instâncias terá de se qualificar.

A experiência da UFRGS mostrou que mesmo com as cotas, a complexidade do sistema de seleção (via vestibular e pontos de corte) foi limitador da ocupação das vagas dos autodeclarados negros em cursos mais disputados, a ponto da universidade ter de modificar o processo de correção das redações para solucionar esse problema. Mesmo com essa mudança, 50% da reserva de vagas para negros foram ocupadas por esse grupo em 2012, nos anos anteriores esse percentual ficava em torno de 34%. A adequação da dinâmica de seleção para efetivar as cotas também foi necessária em outras universidades federais do sul do Brasil, essa é uma falha identificável.

Particularmente, como já comentei, acho que a inclusão do critério de renda feita com a Lei da Cotas vai criar problemas de logística nas universidades, a UFRGS já faz uma ginástica institucional para a averiguação de documentos contábeis. A declaração de renda no Brasil não é algo simples e exige quadro de pessoal preparado para evitar possíveis fraudes e enganos, hoje 10% dos candidatos que ingressam pelo critério de renda tem matrícula negada por não conseguirem comprová-la. Não sou a favor da retirada definitiva do critério de renda da política de cotas, mas penso que poderia haver flexibilização para que as universidades tivessem autonomia de adotar esse critério ou não, com isso experimentos mais paulatinos poderiam ser feito nesse sentido.

Como uma política específica, talvez se tenha colocado peso demais sobre as cotas, digo isso porque o formato definitivo da Lei 12711, ao tentar contemplar as várias modalidades que existiam, com apenas uma normativa buscou atacar no mínimo três problemas sociais distintos, quais sejam: combater a desigualdade étnico-racial no ensino superior, garantir o acesso para alunos de escolas públicas em desvantagem na lógica seletiva em vigor; e abrandar a pobreza reservando vagas para alunos de baixa renda. Não vejo as cotas como uma política de combate direto a pobreza, talvez indireto, mas seria ingênuo achar que esse é seu objetivo primeiro, para isso, deve entrar em cena um conjunto bem mais robusto e complexo de políticas públicas.  Exigir das cotas um potencial resolutivo de problemas sociais profundos que estão além da sua alçada é estratégia política para desmerecer a política.

Uma das questões que mais levantou polêmicas nas cotas foi a de como identificar os sujeitos foco da política. A autodeclaração do candidato é o formato mais usado e virou lei. Acho que experiências como da UNB e da UFPR que optavam por uma comissão para verificar se o candidato era socialmente reconhecido como negro não podem ser jogadas fora. Talvez se deva achar formatos diferentes de fazer isso, mas é importante garantir que pessoas com fenótipo negro ingressem nas vagas reservadas para elas e não correr o risco de casos de  falsidade ideológica e fraudes que possam desvirtuar as ações afirmativas.

Sobre os acertos vale mencionar os programas de apoio a graduação, o PAG criado na UFRGS, por exemplo, busca garantir a todos os alunos da universidade aulas e dinâmicas formativas em áreas fundamentais do conhecimento para além das disciplinas do seu curso. A ampliação da assistência estudantil e o aumento de atividades multiculturais também são fatos que se devem às cotas. Essas políticas estão em constante aperfeiçoamento, há muito que se avançar.

Houve resistência de algum setor na universidade para se aprovar a adoção do sistema de cotas na UFRGS?

Gregório Grisa: quando da primeira votação das cotas no conselho universitário em 2007 houve resistências sim. Há trabalhos de pós-graduação como a tese "Que América Latina se sincere" : uma análise antropológica das políticas e poéticas do atavismo negro em face às ações afirmativas e às reparações no Cone Sul de Laura López na antropologia da UFRGS que narram muito bem a polarização de opiniões que caracterizaram o momento.

Alunos de graduação e pós-graduação de setores mais conservadores foram protagonistas ao se posicionarem contra as cotas no Consun, bem como professores ligados as áreas médicas, das exatas e inclusive um da antropologia. A mídia cumpriu um papel de disseminar a opinião contrária as cotas, com textos de opinião e editoriais que olhando hoje em dia beiravam o terrorismo.  Nas vésperas da votação no Consun se chegou ao extremo de termos muros perto da universidade pichados com passagens racistas, triste lembrança daquele momento da universidade.

As negociações foram intensas para adotar as cotas, muitas concessões foram feitas para se chegar a certo consenso, a pressão do movimento social negro e parte do movimento estudantil foi fundamental, bem como, o fato da UFRGS estar em processo de adesão ao REUNI que previa investimentos para instituições que adotassem ações afirmativas. 

Na renovação das cotas em 2012 o cenário que tínhamos era outro. O mérito da política em si já não era central no debate, o que passou a ser pauta era que modalidade iria se adotar, que critérios iriam se usar e como poderíamos qualificar a política já consolidada a nível nacional.

Um papel importante que os meio de comunicação deveriam cumprir, a meu ver, é o de oferecer subsídios para que as pessoas sem familiaridade com o tema das cotas transcendam a dicotomia contra/a favor que mais imobiliza do que auxilia. Hoje há uma política pública do Estado que visa atacar problemas concretos e contemporâneos, as cotas são um dos vários dispositivos que existem no combate ao racismo e na promoção de igualdade de acesso ao ensino superior, nosso desafio é qualificar essa política e somar a ela outras intervenções necessárias que sejam frutos de diagnósticos precisos e coerentes.

Como você rebate o argumento de alguns setores da sociedade de que, ao incluir um aluno por cotas, o rendimento da universidade cairá?

Gregório Grisa: penso que esse argumento só merece ser rebatido ainda por razões didáticas, isto é, politicamente é importante destituir pensamentos que não se fundam em nenhuma realidade pesquisada. UFOP, UFBA, UNB, UNEB, UERJ e UNIFESP, são algumas instituições que foram pesquisadas, se verificou, em geral, que o aproveitamento dos cotistas é satisfatório e as diferenças desses para os alunos que ingressam pelo processo universal não são significantes estatisticamente.

Aqui na UFRGS os primeiros levantamentos que temos feito caminham nessa direção, o período ainda é curto para desenvolver séries históricas longas, mais de 70% dos cotistas estão ainda em seus cursos, mas ao olharmos evasão, retenção, os dados de cotistas e não cotistas são muito próximos. Em cursos cuja dificuldade de acompanhar é maior, como algumas engenharias e exatas, todos os alunos sofrem. Já em alguns cursos difíceis de ingressar, mas que raramente há evasão e retenção, os cotistas têm melhor desempenho. O tempo que os alunos levam para se formar na UFRGS é tradicionalmente longo em relação a outras universidades, e isso atinge a todos os grupos de alunos.

Diante disso podemos dizer que o que sustenta o argumento de que a universidade perderá qualidade com o ingresso de cotistas é o preconceito. Há uma concepção de mundo por trás desse argumento, de que o ensino superior deve ter o mérito como único critério de seleção. Esse pensamento não leva em conta que a educação superior pública é um direito e que valores meritocráticos quando utilizados exclusivamente em sociedades desiguais se prestam mais a reproduzir hierarquias sociais e étnico-raciais injustamente constituídas do que a promover a justiça. 

Por fim, não se trata de rebater o argumento, mas de oferecer evidências, quem pensa assim precisa estudar.



Nenhum comentário: