terça-feira, julho 29, 2014

Ensino Médio e técnico profissional: disputa de concepções e precariedade




por Gaudêncio Frigotto



"Como nos últimos cinquenta anos avançamos de forma pífia no aumento quantitativo e na qualidade dos jovens que cursam o ensino médio na idade adequada, e as políticas de formação profissional para a grande massa de jovens e adultos estão na lógica da improvisação, da precarização e do adestramento um dos contrastes que se reitera historicamente em nossa sociedade é a absurda concentração de renda e propriedade na mão de uma minoria e, como consequência, uma grande massa de pobres ou miseráveis".


Como a escola e os processos formativos não são apêndices da sociedade, mas parte constituída e constituinte dela, a desigualdade social se reflete na desigualdade educacional. O estigma colonizador e escravocrata da classe dominante brasileira produziu uma burguesia que não completou, em termos clássicos, a revolução burguesa e, como tal, não é nacionalista, mas associada ao grande capital.

Trata-se de uma classe dominante que desde o Império tem um discurso retórico que apresenta a educação como uma prioridade fundamental, uma espécie de “galinha dos ovos de ouro”para resolver todas as mazelas da sociedade. Almeida de Oliveira, em discurso no Parlamento em 18 de setembro de 1882, afirmava: “Na instrução pública está o segredo da multiplicação dos pães, e o ensino restitui cento por cento o que com ele se gasta”.1

Esse discurso hoje se materializa no slogan “todos pela educação”, mas na realidade legitima propostas educacionais de interesse privado dos grupos industriais, do agronegócio e dos serviços, especialmente bancos e grande imprensa privada. Isso se efetiva pela adoção por prefeituras e estados de institutos privados para gerir os sistemas de ensino no conteúdo e no método e nos valores mercantis.

O passo mais ousado desse processo foi lançado em 31 de janeiro de 2013 com o nome sugestivo de Conviva Educação, um virtual “gratuito”, desenvolvido por “investidores sociais” para apoiar a gestão das secretarias municipais de educação de todo o Brasil. Quem são esses protagonistas? Fundação Lemann, Fundação Roberto Marinho, Fundação SM, Fundação Itaú Social, Fundação Telefônica Vivo, Fundação Victor Civita, Instituto Gerdau, Instituto Natura, Instituto Razão Social, Itaú BBA e o Movimento Todos pela Educação. A barriga de aluguel para a gestão e a divulgação é a União Nacional dos Dirigentes Municipais da Educação (Undime), com o apoio do Conselho Nacional de Secretários da Educação (Consed).

Mas desde o Império são exatamente os representantes laicos e religiosos desses grupos privados que no Judiciário, no Parlamento e na burocracia do Estado, sustentados pelo monopólio da grande imprensa, que barraram ou desfiguraram as propostas que emanam do debate da sociedade e buscam afirmar o sentido republicano do direito à educação básica, pública, gratuita, universal e laica. Há mais de dois anos o Plano Educação, amplamente negociado e debatido na sociedade, está sendo protelado e desfigurado por essas forças privadas.

Dermeval Saviani, na videoconferência referida na nota 1, explicita de forma sucinta a negação histórica ao efetivo direito de educação básica pública de qualidade com a equação: filantropia + protelação + fragmentação + improvisação = precarização geral do ensino no país.

Para elucidarmos o resultado desse descaminho histórico, fixamo-nos no ensino médio e na formação técnica e profissional. Trata-se do duplo passaporte à cidadania efetiva, no plano político, social e econômico, mediante o acesso qualificado ao mundo da produção.

Cidadania política significa ter os instrumentos de leitura da realidade social que permitam ao jovem e ao adulto reconhecer seus direitos básicos, sociais e subjetivos e lhes confiram a capacidade de organização para poder fruí-los. No plano da formação profissional, a cidadania supõe a não separação desta com a educação básica. Trata-se de superar a dualidade estrutural que separa a formação geral da específica, a formação técnica da política, lógica dominante no Brasil, da Colônia aos dias atuais − uma concepção que naturaliza a desigualdade social postulando uma formação geral para os filhos da classe dominante e de adestramento técnico profissional para os filhos da classe trabalhadora.

A retórica reiterada da importância da educação “de todos pela educação” e do “convida educação” mostra-se cínica diante dos dados do Censo do Inep/MEC de 2011. O Brasil tem hoje 8.357.675 alunos matriculados no ensino médio. Apenas 1,2% no âmbito público federal, 85,9% no estadual, 1,1% no municipal e 11,8% no privado. Pode-se afirmar que no âmbito público apenas o 1,2% de alunos em escolas federais e algumas experiências estaduais, como a Escola Liberato no Rio Grande do Sul, têm padrões de qualidade internacional, com professores em tempo integral, carreira digna, tempo de pesquisa e orientação, laboratórios, biblioteca, espaço para esporte e arte etc., cujo custo econômico anual médio é de aproximadamente R$ 8 mil.

Dos 85,9% de jovens que estão nas escolas estaduais, mais de um terço o fazem à noite, com professores trabalhando em três turnos e em escolas diferentes e com salários vexatórios. O custo médio é de aproximadamente R$ 2 mil por ano, um quarto do custo federal. Uma mensalidade numa escola privada de elite corresponde ao que a sociedade brasileira está disposta a gastar com a maioria absoluta dos jovens que estão no ensino médio.
Mas o alarmante é o que revela a última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad, 2011) sobre a negação do direito ao ensino médio aos jovens brasileiros. Dezoito milhões de pessoas entre 15 e 24 anos estão fora da escola e 1,8 milhão, em idade de estar no ensino médio, não o estão frequentando. Na faixa de entrar na universidade (18 a 24 anos), 16,5 milhões de jovens, ou seja, 69,1% não estudam. Pode-se concluir que o Brasil não tem de verdade ensino médio.

A metáfora do apagão educacional que aparece no vozerio de empresários e seus representantes intelectuais e políticos, para reclamar da falta de pessoal qualificado, esconde quem o produz: a mentalidade colonizadora e escravocrata da classe dominante.Com o quadro de ensino médio apresentado, a formação profissional em nível superior ou pós-médio só pode ser medíocre.

Os dados da Pnad mostram que apenas 9% dos jovens entre 18 e 24 anos entram no curso superior. É claro que vão faltar, especialmente em algumas áreas, profissionais qualificados. Como nos últimos cinquenta anos avançamos de forma pífia no aumento quantitativo e na qualidade dos jovens que cursam o ensino médio na idade adequada, a maioria só atinge o ensino fundamental, e as políticas de formação profissional para grande massa de jovens e adultos estão na lógica da improvisação, da precarização e do adestramento.

Isso fica evidenciado no seguinte dado histórico: em 1963, no curto governo João Goulart, em razão da carência de trabalhadores qualificados, criou-se o Programa Intensivo de Preparação de Mão de Obra (Pipmo), que foi transitório e de curta duração. Veio o golpe civil-militar e esse programa durou dezenove anos.

O que é espantoso é que, cinquenta anos depois, a grande política do Estado brasileiro na formação profissional dos jovens e adultos reedita o Pipmo, com as mesmas características, mas com um volume muito maior de recursos, por meio do Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec) e do Programa Nacional de Educação do Campo (Pronacampo).

Essas políticas, sem a base do ensino médio, constituem um castelo de areia. A meta até 2014 anunciada pelo Ministério da Educação é de 8 milhões de vagas, a maioria no Sistema S, especialmente pelo Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai). Com o aporte de dinheiro público do BNDES de R$ 1,5 bilhão, pavimenta-se esse castelo, mas continuaremos negando a efetiva cidadania política, econômica, social e cultural à geração presente e futura de nossa juventude. Na expressão de Florestan Fernandes, “continuaremos a ser um Brasil gigante com pés de barro”Vale dizer, um gigante econômico com uma democracia efetiva frágil e formal e uma sociedade absurdamente desigual.

A mudança não virá da classe dominante e seus representantes no âmbito político, jurídico e religioso. Isso somente poderá mudar pela organização dos movimentos sociais, sindicatos e intelectuais; forças políticas e culturais que efetivamente lutem pelos direitos dos trabalhadores do setor público e privado e forcem as mudanças estruturais que mantêm uma sociedade que, como analisa Francisco de Oliveira, produz a “miséria e se alimenta dela”. E essa mudança só se dará quando os autodenominados “investidores sociais” anteriormente citados pagarem impostos sem a troca da tutela do Estado por benefícios fiscais e houver imposto de renda progressivo. Então poderemos ter fundos públicos para uma escola básica que inclua o ensino médio público, laico, gratuito e universal, no padrão do 1,2% da rede federal atual. Certamente será uma poderosa mediação para a cidadania política, econômica e cultural.


Gaudêncio Frigotto

Doutor em Educação – História e Sociedade (PUC-SP), professor titular de Economia Política da Educação da Universidade Federal Fluminense e professor do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas e Formação Humana da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.



Ilustração: Orlando



1. Ver Dermeval Saviani, As reformas educacionais no Brasil, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 13 out. 2012 (videoconferencia)

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