quarta-feira, novembro 21, 2012

Rotina

Ele passou a defender a tese de que a rotina nem sempre representa algo enfadonho. No seu caso a rotina era o que o mantinha vivo. Do auto dos seus setenta e três anos os prazeres e manias eram caricaturas conhecidas, motivos de graça para uns e de raiva para outros. De perto ninguém é normal, mas dele ninguém poderia afirmar isso, vivia só, com seus outros “eus”. A aposentadoria precoce não foi só profissional, virou também um inativo em fazer e manter amizades.
As relações efêmeras dos comprimentos diurnos obrigados e das comunicações fundamentais lhe pareciam mais eficazes e eram suficientes. Para ele dividir tristezas seria uma maldade com os outros. Quando argumentaram com ele que esse pensamento seria uma defesa diante da possível decepção caso se exponha em alguma relação mais intensa, ele diz ser bobagem:
- só se protege quem tem tempo pra viver decepção, eu já não tenho.
Seu apartamento era térreo e de fundos, o corredor era longo, significava a caminhada do dia à tardinha. Mais exercício que isso é dar tempo ao músculo que poderia faltar ao cérebro segundo ele. Essa é uma teimosia que até ele admitia vazia, mas sozinho para os lençóis.
Ele prefere o verão não pela temperatura, mas por poder usufruir mais da parte do dia que preferia. Do lado do seu prédio havia uma sorveteria, ele carregava uma cadeira e sentava na frente todo fim de tarde. Camiseta pra dentro da bermuda, sandália de couro e um livro, que ele tinha há mais de dez anos e nunca chegou à página vinte, e só o acompanhava para os outros não pensarem que ele estava ali só para olhar as pessoas na sorveteria. Ele ia para frente estritamente para olhar as pessoas na sorveteria, era o seu momento. Prefere o verão porque aumenta o movimento, porque os vestidos se multiplicam e encurtam, embora isso só mexa nele o músculo da imaginação.
Os casais, os pais, os animais e as bicicletas eram seus brinquedos, seus objetos de estudo. Ele extraiu dessa atividade de sentar em frente à sorveteria um laboratório de superar solidões, um manancial de histórias para se suportar. O menino da sorveteria, que sempre comentava algo sobre o tempo ou futebol, foi o portador da notícia. O rapaz trabalhava há muitos anos ali, e certa feita nosso protagonista teria lhe confessado, em ato de exceção, que tinha descoberto ser aquele momento de estar ali o mais prazeroso do seu dia. E que caso o jovem não o visse ali sentado no fim da tarde no verão poderia acionar a perícia e foi o que fez o menino hoje sem mesmo verificar no prédio, como quem aposta em jogo de cartas marcadas.

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